A inusitada frase “Ninguém escreve ao coronel” foi ouvida numa música de Humberto Gessinger, Sua Graça. O ex-Engenheiros do Hawaii é reconhecido pelas inserções literárias nas suas músicas, tais “pergunte ao pó por onde andei” (referência a John Fante); “Eu me sinto estrangeiro, passageiro de algum trem” (Albert Camus); “O Exército de um homem só” (Moacyr Scliar); “Não sou eu o mentiroso, foi Sartre quem escreveu o livro” (Sartre); “A medida de amar é amar sem medidas” (Santo Agostinho) e, se fosse aqui elencar todas, a resenha ficaria enorme.
Assistindo ao documentário da Netflix, “Gabo“, aludindo ao Prémio Nobel de Literatura Gabriel García Márquez (1928-2014), escuto Ninguém escreve ao coronel e a conexão foi feita. Sim, trata-se de um livro e de presente de aniversário me dei o próprio. “Ninguém escreve ao coronel” (Editora Record, 2021, 95 páginas), novela findada em Paris, em janeiro de 1957, quando o escritor passava apertos financeiros e vivia de subsídios parcos de um jornal colombiano que fora fechado, o certo é que o texto foi recusado por várias editoras até encontrar o seu destino. A metáfora do livro é belíssima!
Lido em três dias, como se estivesse a degustar uma taça de vinho, com aquele desejo de a história não acabar nunca, a premissa é simples. Numa vila pobre da Colômbia, vive um senhor (o Coronel propriamente dito), com os seus 75 anos; a sua esquálida e asmática senhora e um galo de rinha que era do filho, Agustín, assassinado por distribuir panfletos revolucionários que denunciavam o governo ditador. A pobreza é dolorosa: o senhor tem que dividir as suas preocupações entre comprar o milho para a ave e os alimentos para a esposa.

Sacrifica-se passando fome em alguns momentos e vive a esperar uma correspondência que nunca chega. Todas as sextas-feiras, dirige-se à barca dos correios e nada de chegar a carta relativa à sua aposentadoria. O carteiro responde numa das passagens, inquirido se havia correspondência para ele: “Ninguém escreve ao coronel“. Isso perpassa 15 longos anos e quando ficamos a saber esse facto, bate-nos um desespero. A metáfora aqui é belíssima: quantas vezes ficamos a esperar aquela correspondência que não chega, aquele e-mail de aceitação por parte de uma grande editora aos nossos originais, etc.? Os leitores já passaram por isso?
Num dos trechos da novela, quando o Coronel se impacienta e vai ter com o advogado preto que entrou com o pedido de aposentadoria, intentando trocar de advogado, tudo faz lembrar “O Processo“, de Franz Kafka, e toda aquela burocracia atroz do advogado que atende os seus clientes na cama, doente. O Coronel vende os objetos da casa, tenta vender o relógio de parede e entra em questão até a venda do galo. Isso pouparia ao senhor duas preocupações: o milho e o facto de poder levantar algum dinheiro.
A sua esposa vai se mostrando rabugenta e intragável com o desenrolar da trama, a desesperança somada às vísceras do coronel que doem, deve ser o clima húmido de outubro, toda a resiliência do mesmo se vislumbra como uma calma de Jó. O mesmo consegue levantar algum dinheiro, chegando a trocar os sapatos, mesmo que as expectativas estejam todas depositadas na carta que insiste em não chegar e na sorte advinda da performance do galo nas rinhas de janeiro.
Um cenário desolador numa vila desoladora. O padre que vigia os paroquianos que “ousam” assistir a um filme (pecado, pecado); os partidários do governo sempre a postos para abafar a situação; Dom Sabas e o seu diabetes e os meninos que insistem em verem o galo de perto.
Um livro memorável (obrigado Humberto pela indicação indireta) e a certeza de que perguntas e respostas; envios e recebimentos são situações as quais muitas vezes não dependem apenas de nós. Se por acaso aguardam uma demanda de 15 anos, saibam que não estão sós. Alguns personagens já passaram por isso e o Coronel de Márquez não nos deixa mentir. Um livro delicioso de se ler. Pena que a história é breve.
Se queres que OBarrete continue ao mais alto nível e evolua para algo ainda maior, é a tua vez de poder participar com o pouco que seja. Clica aqui e junta-te à família!