As relações humanas são complexas e guardam dentro de si todo um complexo puzzle de interesses, de falsidade, para o qual é preciso arte a fim de o solucionar. Além disso, muitas vezes na nossa vida a ganância, fortalecida pelo nosso ego, acaba por tomar um lugar de destaque, fazendo com que as conexões que estabelecemos com os outros sejam, na sua essência, apenas circunstanciais, pois, na realidade, não nos acrescentam valor. Sendo que as pessoas, per si, são, porventura, o maior mistério que encontramos durante o nosso caminho; por isso é que é preciso audácia para as desconstruir.
Decerto, “Glass Onion” (2022), sequela de “Knives Out” (2019), aborda estes temas com bastante profundidade, além de permitir toda uma experiência de puro entretenimento, na sequência do primeiro filme. Esta obra é escrita e realizada por Rian Johnson, tal como em “Knives Out”, havendo aqui uma continuidade repleta de sentido e lógica.
Benoit Blanc (Daniel Craig) volta a ser um dos protagonistas, naquele que é o seu último caso; desta feita, um caso com contornos algo bizarros, não fosse o contexto em causa o convite para resolver um falso assassinato. Ele consegue intrometer-se num convívio entre um grupo de amigos, que todos os anos organiza um encontro deste género. Sendo considerado o melhor detetive do mundo, o tom cómico da narrativa começa a partir do momento em que alguém com todas as suas credenciais entra dentro de um mistério que, logo à partida, se identificava como falso.

No entanto — e é aqui que o filme começa a mostrar toda a sua personalidade —, o verdadeiro mistério, com as suas variantes, viria a ser outro, tendo por base este contexto. Contexto, esse, repleto de mentiras, jogos psicológicos, violência e alguma ação, tal como em “Knives Out”, mas, porventura, desta vez mais mecânico e menos focado.
Miles Bron (Edward Norton), antagonista desta história, é quem convida os seus amigos e organiza todo o seu falso assassinato, a passar-se numa ilha deserta na Grécia. Miles que é milionário e presidente de uma empresa, criada em conjunto com Andi Brand (Janelle Monáe), mas que, por divergências em relação ao futuro das práticas — do ponto de vista de Andi, nocivas — dessa mesma empresa, seguiram caminhos distintos. Andi, inclusive, afastou-se da empresa, mas foi deixada sem nada, apesar de ter sido dela a ideia da fundação do projeto.
Tudo isto criou um enorme clima de instabilidade e mágoa entre o grupo, que escolheu apoiar Miles e ignorar Andi, mesmo até cientes de que lado estaria a razão, no entanto optaram pelas regalias económicas que Miles lhes pudesse proporcionar. Contudo, Andi é convidada para o encontro, o que adensa ainda mais o carácter sui generis daquele evento, propositadamente isolado caso alguma coisa pudesse fugir do controlo.
A verdade é que “Glass Onion”, enquanto sequela de uma excelente obra como é “Knives Out”, tinha uma tarefa árdua pela frente: não bastava ter a mesma essência de entretenimento, nem construir uma história assente num mistério repleto de simbolismo, conexões, mecanismos e twists. A missão deste filme consistia, portanto, em conseguir igualar a obra precedente, acrescentando algo mais, isto é, proporcionando ao espectador uma vertente humano-intelectual altamente diferenciadora.

Contudo, é factual que “Glass Onion” não consegue igualar a mestria do primeiro filme no que ao background das personagens diz respeito: aqui, os protagonistas da história parecem mais um meio para um fim do que propriamente um fim em si mesmas, ou seja, não existe objetivamente o mesmo tato na tentativa de explorar/transmitir a verdadeira complexidade/autenticidade das personagens. Ainda assim, isoladamente falando, este detalhe comparativo não prejudica a fruição do filme, de todo, apenas serve para realçar a difícil tarefa que este tinha pela frente.
Decerto, além de esta história ser uma fonte de entretenimento imensa, demonstra também um trabalho exímio na forma como desconstrói, a dada altura, certos momentos da narrativa, que numa primeira fase são mostrados apenas de forma parcelada e, posteriormente, mais ao pormenor, negando ou confirmando certos palpites deixados no ar. Com efeito, “Glass Onion” promove, uma vez mais, um mistério audaz e bem construído, formal e informalmente, e ainda consegue pôr a descoberto certas questões morais, humanas e emocionais, algo que enriquece, e muito, a mensagem global da história.
Por outro lado, também é verdade que — e voltando às comparações (inevitáveis) com “Knives Out” — o seu final não é tão bem conseguido, uma vez que é mais a confirmação de algo do que propriamente o espaço para acrescentar ainda mais uma camada; isto é, de certa forma, é um final um pouco conformista, sobretudo pelo nível elevado da narrativa até então, não conseguindo ser a tal “cereja no topo do bolo”.

Todavia, assume-se como um filme altamente atrativo pela sua ousadia, pela forma como cria novas vertentes cinematográficas a todo o momento, não se resignando nas suas envolvências e permitindo uma crítica social muito forte, atrelada a, sobretudo, duas consistentes interpretações, nomeadamente, as de Daniel Craig — que neste segundo filme até tem maior protagonismo — e Janelle Monáe. Assim, “Glass Onion” afirma-se como uma experiência distinta, sagaz e reconfortante em matéria de entretenimento, com uma herança pesada pela frente graças ao seu antecessor, mas que, ainda assim, mantém a dinâmica e o dinamismo, reforçando a sua complexidade sem nunca perder personalidade.
Globalmente falando, estamos perante uma obra que estuda as relações humanas, fazendo uma reflexão sobre o grande mistério do que é ser-se humano, com todas as qualidades e defeitos que esta condição acarreta e, ainda, sobre a necessidade, durante a nossa vida, de lutarmos pela nossa verdade e de não nos renegarmos à mentira que é anularmo-nos a nós mesmos.
Por um cinema feliz.
Se queres que OBarrete continue ao mais alto nível e evolua para algo ainda maior, é a tua vez de poder participar com o pouco que seja. Clica aqui e junta-te à família!