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Porque A Arte Somos Nós

Sebastião era dono de uma oficina mecânica e borracharia numa cidadezinha do interior mineiro. Como o estabelecimento era conjugado à sua casa, podia-se afirmar tranquilamente que ele morava na oficina. Mesmo nas suas horas de descanso, e ainda que estivesse de banho tomado, as suas unhas sujas de graxa indicavam que ali estava o borracheiro que era borracheiro vinte e quatro horas por dia. A família havia acostumado ao cheiro de graxa que, por vezes, emanava dele. Sujeito prestativo e benquisto pela comunidade, Sebastião muito raramente empreendia uma viagem, exceção feita se esta fosse a negócios, para aquisição de uma peça que lhe havia sido encomendada.

Numa sexta-feira comum, dia igual a todos os outros, a esposa de Sebastião, Alaíde, estranhou o facto de o mecânico ainda estar a dormir às seis da manhã, horário em que rotineiramente já estaria batendo um pneumático no local de trabalho. Esperou um pouco mais antes de acordá-lo às seis e meia, perguntando se ele estava bem.

— Hoje não vou trabalhar, mulher — afirmou Sebastião.

— Sente-se mal? Dormiu direito?

— Sim, mulher. E deixe-me dormir um pouco mais — virou-se para o canto e puxou a coberta, quase cobrindo a cabeça.

Pela primeira vez em muitos anos em que dividiam a cama, Alaíde levantou-se primeiro que Sebastião. Foi fazer café e cuidar dos demais afazeres domésticos, explicando aos filhos que o pai deles resolvera, enfim, tirar um dia de descanso. Os dois filhos mais velhos, um dos quais o ajudava na oficina, estranhou bastante, mas tomou o seu café com pão e manteiga e foi abrir o estabelecimento. As outras três crianças foram avisadas, mas não ligaram muito pela coisa; duas delas foram despachadas para a escola estadual. Alaíde rondou o quarto em vários momentos, e lá pelas oito, arrumou um pretexto para entrar e sondar a respiração do esposo. Ele dormia solenemente, emitindo alguns roncos. “Meu marido parece estar bem de saúde”, pensou tranquilizando-se.

Lá pelas nove, Alaíde ouviu, enfim, um movimento no quarto, que era do levantar-se de Sebastião e do dirigir-se ao banheiro para a sua toalete, demorando-se nela. E durante esse período ela colocou na vitrola um disco de uma dupla sertaneja da qual o casal gostava bastante. Sebastião inovou na toalete, retirando a barba que impregnava a sua cara desde há muito, passou a loção pós-barba do filho; e durante o café, para espanto completo da esposa, solicitou-lhe que o ajudasse a retirar a sujeira das suas unhas, no que foi obedecido imediatamente. Ele tomou o café, teve as suas unhas limpas de toda a sujidade e retornou ao quarto. Vestiu a sua melhor roupa, a chamada roupa de domingo, modesta, mas limpinha, e despediu-se de Alaíde, informando que iria beber uma cerveja no bar do Adolfo, o melhor da cidade, distante cerca de 200 metros de sua casa. Sebastião saiu e nem se dignou a dar uma olhada na oficina, mesmo sendo chamado pelo filho e por um ajudante que estava s ser iniciado aos afazeres do ofício. Ambos estranharam a ausência de barba na cara do adomingado, mas resolveram não comentar nada.

Adolfo estava a iniciar a lida no bar, cozinhando um feijão com focinho de porco, preparando os demais tira-gostos e surpreendeu-se também com essa nova versão de Sebastião. Só ocasionalmente, o cliente vinha ao bar, e mesmo assim, pedia uma cerveja super gelada e podia perceber-se muito tranquilamente que a sua satisfação era beber o conteúdo gelado em vez de saborear o gosto da cevada. Numa garrafa de 600 ml, tomava em breves goles e saía estalando a língua, afirmando que saciara a sede. Desta vez, portanto, sentou-se a uma mesa à esquerda e bebericava, respondendo às perguntas do dono do estabelecimento questionando-o se se sentia bem. Adolfo tentou sondar alguma coisa, mas foi em vão. Lacónico e tentando concentrar-se na sua bebida, Sebastião pediu ao amigo que colocasse no toca-discos uma música sertaneja qualquer. Assim foi feito.

Numa cidade pequena do interior, quando algum facto sai da normalidade, as pessoas se arvoram a investigar os motivos. À medida que a população sabia do inusitado dia de folga do mecânico, estando ele a beber cerveja desde às dez da manhã, especulações começaram a ser feitas, e não foram poucos os conhecidos que arrumaram pretextos para irem ao bar investigar o ocorrido. Alguns puxavam conversa, faziam piadas sobre o seu rosto bundinha de neném, mas não conseguiam arrancar dele nenhuma excentricidade. E assim se passavam as horas.

Alaíde pediu a um dos filhos, que já havia retornado da escola, que fosse ao bar avisar o pai de que o almoço estava pronto. O garoto, ao informar-lhe, foi solenemente ignorado. O mecânico pagou-lhe um pé de moleque e despachou-o para casa, dizendo que não o esperassem para o almoço. O filho mais velho foi até ele para tratar de algum assunto da oficina, pedindo orientações para uma tarefa que faria depois do almoço. O pai despachou-o, recomendando que ele agisse por conta própria, oferecendo antes um copo de cerveja. E voltou a concentrar-se na música e no tira-gosto, uma linguicinha caseira feita com o maior capricho.

O inusitado acontecimento chegou aos ouvidos do padre, que se dignou a entrar naquele antro de perdição, que era um bar, isso para os seus padrões austeros de conduta e moral católica arraigada. Ia, na verdade, passar uma reprimenda no fiel; mas ao vê-lo, acabou a puxar uma cadeira e ignorou completamente o dono do estabelecimento, que perguntou se lhe poderia servir um refrigerante, um copo de leite ou mesmo água. O Padre Francisco despachou-o com as mãos e a cara sisuda; só tolerava Adolfo pelo facto de o estabelecimento sempre dar donativos para alguma obra da paróquia. Inquiriu:

— Sebastião, não se fala em outra coisa na cidade. Vá para casa e deixe de ser alvo de comentários maldosos.

— Sua bênção, padre! Não estou a fazer nada demais. Apenas tomando uma cerveja e comendo um tira-gosto. Toma um copo comigo?

— Sebastião, me respeite! Não estou aqui para brincadeiras…

— Me desculpe, seu padre! Sei que o senhor só bebe vinho sem álcool, o da igreja, mas é que pensei…

— Pensou…, pensou…, pensou… O senhor não pensou nada. Aliás, não está a pensar em nada. Onde já se viu ficar num bar desde cedo e, agora — fez um gesto levantando a manga do paletó para verificar as horas — já são quase duas horas, homem de Deus! Levante-se dessa cadeira e vá para sua casa, para o seu trabalho!

— Mas padre, não estou fazendo nada demais.

— Quer um lugar adequado para ficar? Vá para a igreja.

— Padre, muito respeitosamente afirmo… não estou fazendo nada demais.

O padre saiu aborrecido, ignorando Adolfo e certificou a muitos curiosos que somaram ao insólito dia de folga do mecânico a ida do padre ao bar, mas não arrancaram dele nenhuma anormalidade. Aos poucos, a população resolveu ir cuidar dos seus próprios afazeres.

Alaíde passava o dia apreensiva, e vez ou outra um dos filhos pequenos ia sondar o bar, mas tudo estava dentro da normalidade. O filho mais velho já administrava bem a oficina, e talvez fosse um teste pelo qual o pai estivesse passando o bastão ao filho. “Já não era hora do meu esposo descansar um pouco?”, mas o certo é que Sebastião tinha ainda bastante vitalidade para o trabalho, com seus 46 anos.

Testou-se a resistência de Sebastião no bar. Lá pelas dezoito horas, ele já havia bebido cinco garrafas de cerveja e três pingas, mas como estava comendo petiscos, sua sobriedade estava garantida. Apenas o álcool o fazia perder a inibição, e ele cantarolava uma canção que exaustivamente tocava no som ambiente. Mais três mesas estavam ocupadas, e Genaro, amigo de Sebastião, desfiava um dedo de prosa com ele. Recusou a bebida, até pelo facto de estar a frequentar reuniões dos Alcoólicos Anónimos. Foram surpreendidos pelo filho mais velho de Sebastião, que lhe vinha informar que iria à cidade vizinha namorar; e pedia que o pai ficasse responsável por alguma emergência no local de trabalho. Sebastião viu o filho e sentiu um repentino orgulho, na verdade refletia-se num espelho e via a si próprio, vinte e quatro anos mais jovem. Tirou da carteira uma nota de cem mil cruzeiros e entregou ao filho, que agradeceu e partiu, isso após beber um copo servido pelo pai.

Conversa vai, conversa vem, risos e gargalhadas, tom de vozes alteradas, o certo é que o movimento do bar aumentava, e com ele a chegada da esposa de Sebastião, agora sim, alarmada com o marido fora de casa naquele dia. Quando ela entrou houve um misto de surpresa e apreensão, e todos os fofoqueiros aguçaram os ouvidos para ouvirem da bronca. Mas ela viu que Sebastião estava feliz, como havia muito não acontecia; e se estava com Genaro, não havia nada demais. Nenhum rabo de saias estava presente, e ela sabia que mulheres direitas não frequentam o bar e se culpou internamente pelo facto de estar ali, mesmo sendo Adolfo um senhor bastante respeitador. Deu-se por vencida e retornou, pedindo a Adolfo que vigiasse a quantidade de bebida que vendia ao seu marido, e foi-se embora.

Próximo das 20 e 30, surgiu no bar um caminhoneiro, querendo saber quem era o borracheiro da cidade. Ele conduzia um caminhão com botijões de gás e indicaram com o dedo a mesa de Sebastião. Dirigiu-se para lá.

— Com licença, senhor! Preciso muito que troque um pneu para eu seguir viagem.

Sebastião levantou as vistas, indicou com o dedo a cadeira a se sentar e disse:

— Dia de folga hoje, rapaz! O meu filho está noutra cidade e o abestalhado do ajudante deve estar na escola. Nada posso fazer.

— Puxa vida! Tenho que seguir viagem. Quebre este galho, por favor!

— Homem trabalhador, sei como é. Por que não dorme na cidade? Amanhã lá pelas oito entrego-lhe o serviço pronto.

— Não posso, acredite. Claro que se não houver como, não terei outro remédio. Mas me ajudaria muito se partisse hoje ainda. Tenho compromissos em mais duas cidades antes de retornar à distribuidora.

— Lhe entrego amanhã cedo.

— Desculpe-me insistir. Estou disposto a ser generoso na gratificação.

— Por favor! Isso até me ofende.

— Quebra este galho para mim. Tenho mulher e filha à minha espera.

O apelo comoveu Sebastião. Então ele concordou em realizar a tarefa, mas antes pediu a conta, ao que Adolfo sugeriu que quitasse depois. Sebastião insistiu e pagou a despesa, não queria pendurar. Não estava trôpego, apenas alegre. Dirigiu-se para casa com o motorista e fê-lo adentrar a sala, apresentando-o à esposa, saindo a seguir para vestir o macacão. Como já era praxe com viajantes do fim do dia, Alaíde sempre oferecia jantar ou uma bebida, ao que Carlão recusou. Dez minutos depois, Sebastião retornou vestido com a sua indumentária de mecânico, havia jogado uma água no rosto e mostrava-se disposto para a tarefa. Abriu a oficina para receber o veículo e pôs-se a trabalhar nele. Tira pneu, coloca pneu, calibra um, calibra outro até que, não se sabe ao certo como e nem porquê, uma explosão se deu estando a cabeça de Sebastião quase encostada a um deles. Em virtude da pressão, o estouro foi tão forte, que projetou o seu corpo a uma distância considerável. Naquele instante acorreram a ele Carlão e dois transeuntes que passavam, e o quadro verificado não era dos mais bonitos. A cabeça do borracheiro foi quebrada, estando o tampo aberto, como se tivesse sido escalpelada por um índio comanche. Iluminaram mais o lugar e observaram miolos saindo de seu cérebro, e instintivamente, o acidentado levara as mãos à fronte, espasmodicamente.

Socorreram-no e levaram-no de emergência a uma policlínica na cidade vizinha, e nem se soube da enorme força e resistência de Sebastião, percorrendo oitenta quilómetros entre a vida e a morte. Transferido para uma UTI em estado gravíssimo, sobreviveu e, inconsciente de tudo, vegetou. Passaram-se dias e os familiares souberam da possibilidade de recuperação: mas uma cirurgia no cérebro aventava a possibilidade de ele ficar cego, paralítico ou doido, enfim, o Sebastião ativo, trabalhador e consciente dos seus deveres para com o trabalho e a família havia morrido para sempre. No décimo dia de internação, e após uma demorada cirurgia, foi permitido aos familiares visitá-lo, e todos se assombraram com a perda de peso do acamado. Ele falava vagarosamente, estava com a cabeça enfaixada e enxergava pouco ou quase nada, mas ousou tomar uma sopa de legumes batidos. Pediu sobremesa, ao que lhe foi ofertado arroz doce batido; e após o horário de visitas, todos saíram com a impressão de que ele sobreviveria, mesmo que com graves sequelas.

O certo é que naquela mesma noite Sebastião cerrou os olhos para nunca mais enxergar e apagou da sua consciência tudo aquilo que não mais existia: a sua vida!

Marcelo Pereira Rodrigues

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2 thoughts on “Conto: “O dia de folga”

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