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“Nightmare Alley”, na sua primeira adaptação cinematográfica, datada de 1947 e já aqui abordada, procura contar uma história dramática com alguns contornos de suspense, algo que por vezes não é tão óbvio devido à sua realização nem sempre esclarecida. Desta vez, mais de setenta anos depois, o já premiado realizador mexicano Guillermo del Toro apresenta-nos uma readaptação mais robusta, imageticamente negra e com personagens mais sólidos no que diz respeito ao motivo narrativo. Escusado será dizer que Guillermo teve à sua disposição meios que Edmund Goulding ‘nem sonhava’, contudo, este soube pegar na estrutura do original e elevá-lo a outra dimensão – a começar pelos 150 minutos em oposição aos 110 iniciais.

Cada obra vale por si mesma, mas neste caso é quase impossível não tecer comparações para com a versão de 1947, pois existe claramente um trabalho de estudo por parte do cineasta mexicano, de forma a ser fiel e prestigiar da melhor forma o universo de “Nightmare Alley”, quer seja a longa-metragem ou a obra literária do norte-americano William Lindsay Gresham.

Reflexo das várias qualidades de “Nightmare Alley” está o elenco que aqui se junta: Bradley Cooper interpreta o sonante e carismático Stanton Carlisle, que por vezes demostra ser um homem frágil e apto a (inconstantemente) amar, graças a Molly Cahill, personagem de Rooney Mara. Esta última acaba por ter uma presença mais viva no ecrã, quanto mais não seja pelas características físicas de Mara, a juntar a uma caracterização exímia por parte de toda a produção. Ao contrário da versão de 1947, a relação de Stanton e Molly é mais transparente, com diálogos e cenas típicos de um casal, oferecendo ao espectador uma ligação mais orgânica e próxima.

Bradley Cooper (Stanton Carlisle) e Rooney Mara (Molly Cahill)

Outro grande destaque vai para a personagem da doutora Lilith Ritter, uma psicóloga com um papel determinante no destino de vários personagens, principalmente no de Stanton Carlisle. Grandiosa esta aparição pois temos Cate Blanchett a carimbar uma interpretação glamorosa, depressivamente intensa e, no mínimo, mística. Caso para dizer que a atriz é como o Vinho do Porto…

Outras performances, apesar de não tão arrebatadoras, vão para Toni Collette, que interpreta Zeena the Seer de forma igualmente vistosa, mas com menos “tempo de antena” nesta nova adaptação. Willem Dafoe é Clem Hoatley, que cumpre a 100% a sua função. Destaco também Ron Perlman no seu papel de Bruno, que apesar de não estar tão presente quanto na versão de 1947, consegue assumir na perfeição uma personalidade extremamente protetora, fazendo-se valer pelo seu físico imponente. De forma mais ou menos justa, Guillermo de Toro soube tirar mais partido dos seus atores e atrizes do que Edmund Goulding.

Mas não é só nesta gestão que o realizador se sobressai. De forma clara, a visão do cineasta mexicano eleva a obra como um todo, criando cenários e imagens praticamente inesquecíveis. O uso de tons escuros, sujos, em contraste com os amarelos das luzes, ou até mesmo o esplendor vestido vermelho de Molly, conferem a “Nightmare Alley” uma viagem no tempo, daquelas onde todos os detalhes contam. Seria injusto comparar estes atributos com a versão anterior – quanto mais não seja por esta ser a preto e branco – mas realmente todo este trabalho transporta o espectador para o centro da história. O suspense e o mistério estão constantemente à flor da pele, e isso deve-se também às competências visuais deste projeto.

Cate Blanchett (Dr. Lilith Ritter)

Na construção do argumento, para além da obra literária, Guillermo del Toro inscreve o seu nome em conjunto com Kim Morgan, sendo que certos acrescentos acabam por fazer diferença na montagem narrativa. O primeiro ponto positivo vai para a construção do personagem principal, Stanton Carlisle. Enquanto que na versão de 1947 vemos um homem já entrosado na comunidade circense, agora somos confrontados com um passado negro e misterioso por parte de Stanton, onde a figura paterna tem um papel determinante na sua personalidade. Este background confere um maior interesse no nosso personagem principal, interesse esse constante ao longo da narrativa, pois Stanton é um verdadeiro showman – para o bem e para o mal.

Os pequenos detalhes são mais apressados, contudo, uma das melhores cenas do primeiro ato mantém-se positivamente intacta, quando Stanton tem um diálogo impressionante com o sheriff local, este último determinado em fechar a feira. Esta é a primeira prova de que Stanton estava destinado a voos mais altos, contudo, este ignorou o manual de instruções em como aterrar. A metáfora da desgraça de Pete (David Strathairn) é igualmente retratada, funcionando esta como uma espécie de desmaterialização do espírito, um final sinuoso que, mais uma vez, tem no álcool o significado da queda.

A entrada em cena da doutora Lilith Ritter é digna de menção, pois com uma postura tão agressiva quanto glamorosa, o seu conflito com Stanton consegue criar mais suspense (comparando com a versão de 1947), pois existe um novo desafio “em cima da mesa”, desafio esse que por momentos parece ser o fim de toda a trama – ou a sensação de que a história como a conhecemos pudesse levar uma guinada. Este brevíssimo plot-twist é essencial neste tipo de filmes, pois mesmo nós sabendo o truque do artista, como lidará este com o desconhecido? É essa coragem em arriscar, junto à sua imaginação, que fazem de Guillermo del Toro uma das principais referências do cinema contemporâneo.

“The Nightmare Alley” (2021)

Carregado de semiótica, “Nightmare Alley” procura estabelecer ligações através de objetos, algo mais predominante nesta última versão. O relógio do pai de Stanton, o opulento consultório da Dra. Lilith Ritter, os cartazes circenses, as cartas de Tarot, todos carregados de uma certa profecia. A neve e o frio estão sempre presentes, salientando o ambiente tantas vezes hostil. Stanton tentou controlar o tempo, a vida, mas este não resistiu aos seus próprios pecados. No fim, todos pagamos. O final não é surpreendente, contudo, este é mais inteligente e económico – ao invés da versão de 1947, cujas últimas cenas diria serem algo desnecessárias ou exageradas. Desta vez, o karma faz-se ouvir por entre risos de demência.

Como salientei anteriormente, tendo visto e escrito sobre a anterior versão de “Nightmare Alley”, as comparações eram inevitáveis, e sinceramente acredito serem uma boa base para entendermos o que mudou e o quão mais a história nos poderia oferecer. Penso que Guillermo del Toro cumpre com essa ambição, salientando a sua estética, tanto visual como narrativa – impossível não nos transportarmos para “A Forma da Água” (2017) por breves segundos, onde o cineasta dá enfâse ao vintage e aos cenários repletos de madeira, dourados e pontos de luz expressivos – ofertando o espectador com duas horas e meia do melhor que se faz na Sétima Arte.

O título completo em português deste filme é “Nightmare Alley – Beco das Almas Perdidas“, e devo admitir que raros são os casos em que um título assenta tão bem à obra em questão…

Rating: 3.5 out of 4.

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One thought on ““Nightmare Alley”: O merecido regresso

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