A discussão dos videojogos como forma de arte é uma controvérsia antiga e já tão batida que pouco de bom pode advir de mais uma tentativa de argumentação, a favor de um lado ou do seu contrário. Ao invés, será muito mais benéfico e produtivo olhar para trás e perceber que certos videojogos em particular espoletaram a problemática e fizeram o público olhar de outra forma para o meio gaming, que não a de simples produtos focados em satisfazer as necessidades do consumidor.
Para quem defende que os videojogos são (ou podem ser) arte, muitos dos argumentos se devem o trabalho de Fumito Ueda, designer de jogos japonês, cujas obras têm permitido mostrar o lado mais artístico deste meio interativo e permitido ao próprio Ueda ter ganho o estatuto de auteur, algo raro quando o assunto são videojogos.
O primeiro jogo de Ueda foi “ICO”, lançado no final de 2001, estando prestes a completar duas décadas de existência. Fumito Ueda foi o principal cérebro por detrás da obra, acumulando os papéis de designer e diretor, aliado à sua pequena equipa criativa, a Team ICO. Embora tenha passado longe do estatuto de sucesso comercial, “ICO” recebeu na altura do seu lançamento vários elogios pela sua vertente artística. Hoje é um jogo de culto que influenciou os criadores das séries “Souls“, “Metal Gear Solid“, “Prince of Persia“, sendo, sem qualquer margem de dúvida, um dos jogos mais influentes de sempre.

Numa perspetiva redutora, a história de “ICO” é sobre um rapaz chamado Ico e uma rapariga chamada Yorda. O jogador controla Ico, com o objetivo de escapar de um castelo juntamente com Yorda. Na cena introdutória, Ico é abandonado no castelo e trancado dentro de um caixão para ser sacrificado, tendo conseguido escapar graças a um tremor de terra que permitiu destruir o caixão. Enquanto explora o castelo, Ico encontra Yorda, uma rapariga também cativa no castelo que fala uma linguagem que este não compreende.
Durante a jornada da dupla, o jogador terá que controlar Ico para explorar o castelo, resolver diversos puzzles e lutar contra monstros sombrios usando paus ou espadas. Pouco mais se pode destacar da jogabilidade de “ICO”, que, mesmo hoje em dia, se afigura como bastante minimalista. Na altura do lançamento de “ICO”, havia uma grande preocupação (que ainda se reflete nos dias de hoje) em conseguir adicionar o maior número possível de características e mecânicas aos jogos, para os tornar mais apetecíveis. Esta redução de elementos do jogo, porém, foi completamente deliberada e intencional por parte de Ueda, usando uma filosofia que o próprio chamou de “design subtrativo”.

Em entrevistas, Fumito Ueda admitiu que as primeiras versões de “ICO” possuíam um sistema de combate complexo, inúmeras personagens e áreas exploráveis, elementos que foram todos removidos posteriormente. Contrariamente ao que é comum no desenvolvimento de jogos, em que certos elementos têm que ser removidos por restrições financeiras ou de recursos humanos, em “ICO” os mesmos foram subtraídos com o objetivo de encontrar os constituintes fundamentais do jogo e de cortar tudo o que não estivesse relacionado com estes.
Como muitos jogos viriam mais tarde a tentar replicar, este elemento core de “ICO” é a ligação entre os dois protagonistas, Ico e Yorda, e a exploração dos temas da amizade, companheirismo, e de entreajuda. Deste modo, tudo o que foi deixado na versão final do jogo teve como objetivo reforçar e suportar esse tema central. Por exemplo, dado que Ico e Yorda falam línguas diferentes, muitas vezes Ico terá que guiar Yorda, havendo um botão que serve para o protagonista dar a mão à sua companheira.
Do mesmo modo, em diversos puzzles Ico tem que mover plataformas e subir cordas para chegar a novas áreas, contudo, esses desafios requerem uma segunda parte onde Ico tem que encontrar um caminho seguro para Yorda atravessar.
Durante os momentos de combate, Ico não pode morrer, apenas a Yorda isto pode acontecer, caso os monstros a consigam capturar – algo que acontecerá caso Ico a deixe muito tempo sozinha. O sistema de combate em si também sofreu uma simplificação, onde apenas existe um botão para usar um pau ou espada, e onde Ico não tem níveis de skill nem pode usar combos. Esta relação entre Ico e Yorda é uma relação de interdependência, pois, embora Ico seja o único que consegue lutar, Yorda é a única que tem capacidade para abrir certas portas. Adicionalmente, para gravar o progresso do jogo, ambas as personagens têm que se sentar simultaneamente nos bancos que vão aparecendo no jogo.

No fundo, Ueda resolveu remover todos os elementos que não contribuíssem para a criação e desenvolvimento dessa ligação entre Ico e Yorda, bem como da imersividade que pudesse relembrar os jogadores que estão a jogar um videojogo. Por isso mesmo, não existem health bars, mapas ou ecrãs com inventários, e grande parte do jogo nem sequer tem banda sonora não diegética. A trilha sonora, “Ico: Kiri no Naka no Senritsu”, foi composta por Michiru Ōshima.
O resultado deste foco numa temática central é o raro exemplo de um videojogo que de facto pretende dizer alguma coisa, sem elementos externos que consigam diluir essa mensagem. É, talvez por essa mesma razão, que “ICO” consegue ainda hoje impactar os jogadores. Embora tenha gráficos bastante datados quando analisados sob a lente do presente e um combate que talvez seja demasiado simplista, o jogo mostra que muitas vezes menos é mais. “ICO” deixa o argumento de que, quando as características e mecânicas do jogo não contribuem para o tema central do mesmo, estas enfraquecem a sua capacidade de deixar a marca no jogador.
Disponível em: PS2, PS3 (remaster)
Se queres que OBarrete continue ao mais alto nível e evolua para algo ainda maior, é a tua vez de poder participar com o pouco que seja. Clica aqui e junta-te à família!
Em relação ao primeiro parágrafo, aconselho a leitura do artista Michaël Samyn, pois “uma controvérsia antiga e já tão batida que pouco de bom pode advir de mais uma tentativa de argumentação, a favor de um lado ou do seu contrário” releva não compreender a problemática (medium artístico =/= arte) ao colocá-la de forma tão subjetiva.
Parabéns pelo artigo e pela abordagem sobre um jogo que me traz boas recordações.
Estamos sempre a aprender, obrigado pela referência.
Ainda assim, numa perspetiva (talvez demasiado) superficial, a simples discussão “arte vs serviço” é um tópico com que me tenho deparado muito em fóruns/críticas sobre videojogos daí a menção (embora talvez não tão ‘antiga’ como referi).
Independentemente de tudo, “ICO” é um videojogo fantástico, digno de menção