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“A Vendeta” (Editora Biblioteca Azul, 3.ª edição, 2012, 84 páginas) é uma novela do grande romancista Honoré de Balzac (1799-1850) com as suas costumeiras impressões sobre a sociedade parisiense e os seus costumes, hipocrisias e ressentimentos, formando mais um belo quadro comportamental que perdura até os dias atuais, por se tratar as afeções humanas como elas costumam ser.

Tudo gira em torno de uma pobre família que vem fugida da ilha da Córsega, liderada por Bartolomeu di Piombo, um sessentão que se encontra às portas de Napoleão Bonaparte em Paris e lhe pede inusitada audiência, aventando conhecimento pelo facto de o imperador ser conterrâneo seu da ilha. Coincidentemente, chega ao palácio em frente às Tulherias o irmão do imperador, que o recebe e apresenta a sua questão ao todo poderoso.

O pobre homem vinha fugido de uma vendeta interminável, onde assassinara uma família rival na Córsega, os Porta, após estes terem posto fogo às suas terras, e a saber que os corsos têm por característica a dureza dos modos e dos comportamentos. Vem com a sua esposa e uma linda criança de nove ou dez anos.

A novela faz um corte e parece avançar uns quinze anos. Observamos a família di Piombo bem instalada, residindo num palacete, e Ginevra, a filha, tendo aulas de pintura com o aclamado senhor Servin. Ela é de uma beleza ímpar e acaba por sofrer ciúmes das outras alunas pela predileção do pintor mestre, e parece não se preocupar com esses olhares evasivos. Balzac narra assim a indiferença praticada pelos grandes de espírito, cito:

Nada mortifica mais um grupo de moças, como, aliás, a todos, do que ver, uma maldade, um insulto, ou uma frase de espírito falhar no seu efeito em consequência do desdém evidenciado pela vítima. Parece que o ódio contra um inimigo aumenta de acordo com a altura à qual ele se eleva acima de nós.

Ilustração da novela de Balzac, “A Vendeta”, pelo pintor francês Édouard Toudouze (1897)

O atelier de Servin acaba servindo de refúgio emergencial para um soldado fiel a Napoleão, sendo que este acabara por cair em desgraça e partidários seus não gozam mais de boas vidas. Interessante aqui notar a característica do autor em misturar personagens fictícios e reais, sendo os fictícios construções que, pasmem, chegaram a quase três mil, passeando de uma novela para outra. Luigi é o nome deste fugitivo e que acaba sendo descoberto por Ginevra, que logo se apaixona por ele, e vice-versa.

Mesmo enfrentando a curiosidade e os mexericos das outras alunas, e conseguindo Luigi um novo emprego com o comando político que assumira a França, o facto de o rapaz ser um corso parece indicar mais proximidade com a família di Piombo, mas, um pouco mais dramático que a peça de Shakespeare, “Romeu e Julieta“, o rapaz foi a única vítima poupada da vendeta de década e meia.

Traz no sobrenome a maldição de ser um Porta e o pai Bartolomeu, e ao ouvir o facto, fica mortificado e diz não aceitar o enlace. A filha, apesar de amorosa e obediente aos pais, insurge-se, uma vez que o coração possui mecanismos próprios de desejo e amor. No palacete, o velho teimoso a deserda, apesar de todo o sofrimento, acompanhado pela mãe que não tem forças para discordar da autoridade paterna.

Casam-se numa cerimónia simples, e sem o fausto das bodas, o autor encanta-nos mais uma vez com a sua ironia sutil, acerca do desinteresse de algumas pessoas, a ver:

O amor despejou tesouros de luz entre os dois amantes, que não viram mais do que a si próprios naquele tumulto: estavam sós, ali, no meio daquela multidão, tal como deveriam percorrer a vida. As testemunhas, indiferentes à cerimónia, falavam tranquilamente sobre os seus negócios.

Retrato do escritor francês Honoré de Balzac

Por mais que Luigi e Ginevra compartilhem um lar harmonioso e cheio de amor, mesmo que modesto, e apesar dos esforços de ambos para manter as contas em dia, a pobreza insiste em comparecer e ambos passam tempos difíceis. Tudo se vem agravar com a chegada do primeiro filho, o qual Ginevra coloca o nome do seu pai e a situação chega a um desfecho crítico e que por si só nos chama à leitura deste. O autor aponta:

A situação do casal tinha qualquer coisa de espantoso: a alma dos dois esposos nadava na felicidade, o amor os cumulava com os seus tesouros, mas a pobreza erguia-se como um esqueleto no meio daquela seara de prazer e um escondia do outro as suas inquietações.

Grande observador de costumes, verdadeiro repórter e colunista social da sua época, Balzac incorre em alguns clichés como o de aventar costumes rígidos para os habitantes da ilha da Córsega, certamente inspirado na vida do morador mais ilustre, sendo que ele mesmo, Balzac, só visitaria o lugar muito tempo depois. Em quatro breves capítulos, narra-nos uma história convincente e intrigante, cheia de amor e mágoas e a certeza de que leitores de folhetins à época deviam esperar ansiosamente pela continuidade destas belas histórias. Agora reunidas em livros, só nos dão o prazer indelével de dialogar com uma mente tão fecunda. Mais um livro maravilhoso!

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 4 out of 4.

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