De acordo com o tema “Génesis” dos Encontros da Imagem de 2021, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresentou já “O Crime do Sr. Lange” (1936), por Jean Renoir, o esperançoso e hipotético nascimento de uma sociedade mais solidária, “A Gruta dos Sonhos Perdidos” (2010) por Werner Herzog, o nascimento da arte nas pinturas de uma gruta, e “Pedro, o Louco” (1965), por Jean-Luc Godard, um filme emblemático da Nouvelle Vague do cinema francês.
Hoje, vemos “Alemanha, Ano Zero” (1948) – título em português – e, a seu propósito, poder-se-ia, talvez, falar do renascimento da vida numa cidade destruída pela guerra. Roberto Rossellini afirmou mesmo que, com este filme, gostaria de ter deixado essa mensagem de esperança. Porém, a Berlim reduzida a um monte de escombros que descobrimos no longo travelling da abertura ainda é habitada pelos fantasmas do passado e estes continuam a fazer as suas vítimas.
“Alemanha, Ano Zero” é o terceiro filme, depois de “Roma, Cidade Aberta” (1945) e de “Libertação” (1946), da trilogia da guerra de Rossellini. A questão que o motivou, conta-nos o próprio realizador, foi esta: sendo os alemães pessoas como todas as outras, o que é que os terá levado a cometer tamanhas atrocidades, o que é que os levou àquele desastre?
A sua resposta é de ordem moral e reflete a sua formação cristã: a essência do nazismo está na troca da humildade pelo culto da heroicidade, na exaltação da força sobre a fraqueza, do orgulho contra a simplicidade, e é desta perversão moral e das suas consequências que nos fala a história de Edmund, o jovem rapaz que se encontra no centro da história.

O neo-realismo e, em particular, o entendimento que dele tem Rossellini, encontra, em “Alemanha, Ano Zero”, uma clara enunciação: sobriedade, perspetiva documental, ausência de sentimentalismo, que são os traços fundamentais do seu estilo. Uma narrativa concisa, uma apresentação crua dos factos e uma confiança na maturidade do espectador, na sua capacidade de interligar e reter a mensagem do filme sem que haja necessidade de recorrer a rebuscados artifícios retóricos.
Os atores não são profissionais, mas pessoas comuns. Particularmente difícil parece ter sido a escolha do rapaz que encarnou a figura de Edmund (Edmund Moeschke) e dizem aqueles que conheceram o filho de Rossellini, que morreu poucos meses antes das filmagens, que a semelhança entre os dois era extraordinária. Foi ao seu filho que Rossellini dedicou este filme.
É em Edmund que todo o filme se centra. A câmara segue-o em sequências com poucos cortes, na sua casa, habitada por várias famílias, em companhia dos amigos com quem busca dinheiro e comida ou vagueando entre ruínas pelas ruas de Berlim. É pelos olhos desta criança de 13 anos que conhecemos o estado e a vida da antiga capital do Reich imediatamente depois da guerra.
O pai de Edmund, doente e acamado, recebe uma parca pensão; a irmã frequenta os bares onde procura obter alguns favores dos estrangeiros que conhece, mas recusa prostituir-se; o irmão, um veterano da Wehrmacht, refugia-se em casa com medo de ser internado num campo de concentração. A sobrevivência exige uma luta diária. Edmund sente que depende dele o sustento da família e recorre ao mercado negro para negociar seja o que for.

O momento chave do filme é o do seu encontro com um antigo professor, agora afastado do ensino por causa das suas convicções nazis. É ele quem lhe explica que não pode continuar a sacrificar-se pelo seu pai. “Olha para a natureza“, diz-lhe. “Os fracos têm que morrer para que os fortes possam viver. É preciso ter a coragem de permitir que os fracos morram. Tudo se resume a salvar-nos a nós mesmos“. As suas palavras calam fundo na mente do jovem Edmund e vão levá-lo a envenenar o pai.
Culpa, arrependimento e expiação é o leitmotiv do filme. Já o tínhamos visto enunciado pelo pai que, deitado na cama onde morrerá pouco depois, considera estar a pagar, impotente perante a fome que ameaça a família, o facto de não ter tido a coragem de se ter oposto a Hitler. Afinal, a culpa dele é a culpa de Edmund, é a culpa de toda a Alemanha.
Em face do final trágico do filme, do suicídio de Edmund, em que medida podemos compreender a mensagem de esperança que Rossellini diz ter querido transmitir? Apenas na medida em que, mesmo num mundo onde o homem se transformou no lobo do homem, a luz bruxuleante da moral cristã nunca se apagou e é ela quem, por fim, acabará por prevalecer.
António Cruz Mendes
Este texto foi publicado no site dos nossos parceiros Lucky Star – Cineclube de Braga, inserido na programação do mês de Outubro. O ciclo chama-se “Génesis 2:1” e as sessões acontecem todas as terças e quartas-feiras do mês. Amanhã, será exibido o filme de Akira Kurusawa “Pouca Terra… Pouca Terra – Dodesukaden” (1970) e quarta-feira será a vez de “Terra”, realizado por Rosanna Torres e Hiroatsu Suzuki.

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