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Moro numa pequena casa, atrás de um pé de manacá. Essa flor dos barrancos é um pouco louca, pois muda de cor. Nasce branca, depois vai passando para o rosa, o lilás até chegar ao roxo macerado. Extravasa um aroma delicado, de mel sugado por pássaros. A palavra “manacá”, de lirismo popular, logo nos traz à memória versos rimados em “a”, como naquele poema do ultrarromântico poeta Fagundes Varela (1841-1875): “Pelo jasmim, pelo goivo / Pelo agreste manacá / Pelas gotas do sereno / Nas folhas de gravatá / Pela coroa de espinhos / Da flor do maracujá.

Atravessando a Serra do Mar, em direção à sua fazenda de café em Santos, a pintora Tarsila do Amaral (1886-1973), deve ter visto muitos arbustos de manacá eclodindo nas suas copas como capelas pelas encostas. Representou a árvore num quadro intitulado “Manacá”, de 1927. São formas estranhas, livres, impossíveis de encontrar na natureza. Um tufo de pétalas desiguais, roxas e róseas; montanhas cor de lavanda ao fundo; uma base compacta de cactos verdes e rombudos. Há uma fina sensualidade nessas tonalidades místicas. E a mais pura brasilidade.

Uma referência da Arte naïf, a pintura de Tarsila do Amaral data ao ano de 1927

O poeta Mário de Andrade (1893-1945), figura central da vanguarda de São Paulo, compôs letra e música do Hino do grupo do gambá, cantada pelos modernistas no início das suas reuniões. Esse hino foi depois gravado por Marcelo Tápia e o grupo Colher de Pau, em 2009. Mário chama os homens de “gambás”: “Guilherme de Almeida (1890-1969) é gambá“, “Sérgio Milliet da Costa e Silva (1898-1966) é gambá“, “Oswald de Andrade (1890-1954) é gambá” e as mulheres, por sua vez, são “manacá”: “Tarsila do Amaral é manacá“, “Olívia Penteado (1872-1934) é manacá” e, excluída, mas sempre lembrada, a pintora Anita Malfatti (1889-1964), também seria “manacá”.

Imagino uma reunião desse grupo fascinante na casa da colina de Guilherme de Almeida. Todos recostados nos sofás de palhinha cobertos de almofadas coloridas, entre objetos orientais e copos de cristal. O piano aberto com as suas teclas pretas e brancas, pronto para ser tocado. A bela Tarsila do Amaral, de cabelos puxados e longos brincos, comenta sobre a antropofagia nas artes plásticas, sobre a necessidade de digerir as influências estrangeiras como no ritual canibal em que se devora o inimigo com a crença de poder absorver suas qualidades. O poeta Oswald de Andrade, seu companheiro à época, detalha como dera o nome de Abaporu, que significa em tupi “homem que come carne humana” ao intrigante quadro de Tarsila.

Para além de ser amigo de vários artistas, Guilherme de Almeida era advogado, jornalista, heraldista, crítico de cinema, poeta, ensaísta e tradutor

Mário de Andrade, rindo-se do casal “tarsiwald“, lê alguns poemas de seu polémico “Pauliceia Desvairada” (1922). Guilherme de Almeida, compenetrado, ajuda a mulher, Baby, a servir licor aos convivas. Mostra um número da revista Klaxon e defende a liberdade de ritmo no sentir, no pensar, no dizer. Aponta um anúncio do chocolate Lacta, afirmando que a publicidade utiliza a linguagem da poesia e os grafismos para seduzir o consumidor. O pintor e crítico de arte, Sérgio Milliet, fala um português arrastado, com sotaque francês, pois residira tantos anos na neutra Suíça, fugindo das agruras da Primeira Guerra Mundial. Sérgio é o homem-ponte entre a cultura sedimentada da Europa e a busca de uma identidade brasileira e única.

É preciso contar ao grupo sobre o valor de versos descontínuos, independentes, sobre os cubistas, os futuristas e as fases da pintura do genial Picasso. Dona Olívia Penteado, elegante, chega com novidades sobre um grande projeto: a criação de um Salão de Arte Moderna. Ela conseguirá os recursos. Quer os quadros da sua amiga Anita Malfatti em destaque: o “Homem Amarelo”, “O Farol”, “A Estudante Russa”, juntos, numa ala nobre do salão. Todos aplaudem. Há que se apoiar Anita, que está deprimida e triste, depois de duramente criticada por Monteiro Lobato, no artigo “Paranoia ou Mistificação”. O grupo une-se, aproxima-se, confraterniza-se, enquanto fotografo a cena nas minhas retinas.

Dá para compreender. O gambá é uma espécie de rato solitário, noturno, crepuscular. Temido e dramático. Faz-se de morto quando as coisas se tornam perigosas. O manacá é planta de cerrado, de terra árida, de beleza primitiva. O grupo modernista é refinado e caipira; verde, amarelo-mamão e roxo.

Moro distante, numa pequena casa no sul de Mato Grosso. Daqui, relembro dos amigos de São Paulo, vivos e mortos, enquanto a noite desce com as suas estrelas sobre o pé de manacá.

Raquel Naveira

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