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Confesso que só recentemente comecei a ler com mais atenção Ernest Hemingway (1899-1961). Há tempos, havia lido “O Velho e o Mar” (1952). Recentemente reli-o para escrever uma resenha para OBarrete. Depois “O Adeus Às Armas” (1929). E espero ler e resenhar aqui outros dos seus livros. Da sua personalidade fui saber por algumas vias indiretas, como na brilhante perceção de Woody Allen no excelente “Meia-Noite em Paris“, a longa-metragem que retrata o escritor intratável que implicava o tempo todo com Zelda, após levar uma nega da mesma. Com o namorado F. Scott Fitzgerald, este orienta-o a não perder a sua veia de escritor em prol da bebedeira, afirmando que Zelda estava a influenciar os seus escritos de forma negativa.

Woody Allen revela o espírito combativo e concorrente do figuraça, quando ele desdenha de ler um trabalho original de um concorrente, interpretado pelo fora de época Owen Wilson. O argumento é brilhante: “Se o seu manuscrito for demasiado bom, eu ficarei com raiva pelo facto de não tê-lo escrito; se for demasiado mau, entenderei que perdi o meu tempo. Aprenda uma coisa: escritores são competitivos!“. Boa sugestão! Passei a incorporá-la.

Em outros filmes, perfis biográficos que mais retratavam o herói amante das touradas, engajado em guerras, como a Primeira Guerra Mundial e o combate ao franquismo em Espanha, muitas mulheres, bebidas e caçadas, muitas das quais quase o vitimaram, e também pescarias. Cercado de gatos, vivia em suas companhias, sendo que as suas mulheres chegavam a reclamar de viverem num gatil. Assim era Hemingway.

Ernest Hemingway e o político revolucionário cubano Fidel Castro. O escritor norte-americano tinha casa em Cuba e apoiava o então presidente

Mas toda a fanfarronice e o jeito canastrão escondiam uma depressão endógena, cópia do seu pai frouxo que cometeu suicídio e presságio dos presságios, coube a Ernest guardar essa arma. A sua literatura encontrou fama meteórica nos anos 20, mas o mundo havia mudado bastante na década seguinte, com ultranacionalismos e a observância de que literatura deveria ser engajada, no sentido social. Isso passava ao largo da honrosa Geração de 20, ou a Geração Perdida, da mesma forma que “O Grande Gatsby” (1925) de Fitzgerald perdeu todo o seu viço na década do advento do nazismo e do franquismo.

Era como se os escritos de Hemingway tivessem ficado datados e sofressem do ocaso, mas veio a lume o importante “O Velho e o Mar” como uma brilhante metáfora da eterna luta do homem contra a natureza. Um enfrentamento mesmo. As tintas dos livros dele pareciam ser de sangue, e que fosse quente e vivo. Neste pequeno livro a escrita sublime encontra leitores que voltam a prestar atenção ao escritor Hemingway, isso quase chegando aos anos 50, a ponto de ele ser laureado com o Prémio Nobel de Literatura em 1954. Não pôde estar presencialmente, pois recuperava de um grave acidente num safári em África. Um embaixador leu o seu discurso e recolheu a comenda.

Perceberam como o sujeito continuava aventureiro? Galardão melhor não existe, e o certo é que a felicidade parecia não satisfazer a sua condição existencial envelhecida à medida que os músculos iam ficando flácidos. Era como se não fosse possível imaginarmos um escritor velho, sem aventuras e sem desafios, apenas existindo, bastante magro e já com barbas grisalhas, apesar da idade. Ele havia envelhecido muito. O tiro de espingarda foi o ato imitativo paterno, de quem se havia desiludido com as coisas a tal ponto de deixar de ser. Uma verdadeira lição do anti-herói.

Ernest Hemingway sempre foi uma pessoa muito ativa, tendo particular gosto pelo boxe

Se o artista morre, a sua obra fica. Pujante, como um belo prato deve ser servido com parcimónia, de forma a ser degustado. Entremeamos o ator Clive Owen interpretando o escritor fanfarrão (excelente atuação) e fico a pensar o que ele diria hoje acerca dessa literatura engajada e cheia de modismos, com uma categoria denominada, macacos me mordam, literatura feminina! Literatura feminina como categoria! Argh! Desconfio que Hemingway coçaria o saco, cuspiria no chão e afirmaria que não leria nada dessa merda. Simples assim. Passadas seis décadas da sua morte, ele foi-se cedo para não ter que rir das categorias pertencentes literárias.

Lembrei-me disso quando estava a corrigir um original do meu labor que visa uma publicação em Espanha. A competente tradutora, atenta aos ditames atuais, comunicou-me que havia atenuado uma passagem edulcorando-a, pelo facto de algumas mulheres se poderem sentir ofendidas com o trecho. “Fiquei para ter neném”, é uma expressão brasileira que não significa exatamente que eu irei parir um filho, e desautorizei-a da edulcoração. Foi quando lhe expliquei a minha característica machona de escrever, tipo um Hemingway coçando o saco e cuspindo fumo no chão. Puta que pariu (o editor de OBarrete permite-me esta expressão?), ter que escrever amaciado para não ferir suscetibilidades de mulherzinhas travestidas de escritoras.

Óbvio que não são todas, mas não admito militância em quem se propõe a escrever literatura. Então é isso, neste breve perfil de Hemingway, apregoo que aprendi muito com os seus mandamentos, autêntico até não mais poder e eu mesmo não concebo uma literatura sem o sol na pele. Também herdeiro de uma depressão endógena, a vantagem é que não carrego comigo nenhuma arma e sei que o meu antídoto é a escrita diária, como forma de afastar os meus demónios. Hemingway, o próprio, me concederá muitos confortos, à luz das suas obras, da mesma forma que muitos clássicos que por aí se encontram.

Marcelo Pereira Rodrigues

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One thought on “Hemingway para irritar as feministas

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