Certamente tarefa que lhe foi atribuída pelos enciclopedistas, o “Dicionário Filosófico” de Voltaire (1694-1778) (Editora Abril Cultural, 1978, 208 páginas) é um livro que quase passa ao largo dos simples verbetes. Seguindo uma ordem alfabética, o polemista francês discorre sobre o que compreende utilizando uma escrita áspera e direta. Geralmente quando somos indicados a ler um dicionário, entendemos que será para o ter em momentos de socorro, mesmo sendo este parecido a uma lista telefónica. Mas com Voltaire isso é diferente.
O filósofo vai expondo as suas conceções sobre os assuntos e escolas literárias, povos, e tudo isso com o seu contumaz chicote linguístico. Findando a obra, que fiz questão de ler de A a Z, saí com a impressão de que a bandeira levantada por ele acerca da liberdade de expressão é relativa. Parece uma licença para poder atacar os seus adversários sem dó nem piedade, a ver os muitos momentos em que chega a ser indelicado e notadamente antissemita.
Se a fama de Voltaire não era boa, a ponto de uma personagem de Gustave Flaubert (1821-1880) em “Educação Sentimental” relatar que desgostava de Voltaire pelo facto deste não gostar do povo, tenho que concordar com essa visão. Imagino o polemista olhando pela janela e ao ver passar as pessoas, ter vontade de vomitar devido à perceção de que eram tapadas. Nada o contrariou mais que o fanatismo religioso, pois sabia que os padres utilizavam o poder de persuasão para engabelar pessoas crédulas. Ah, Voltaire! Isso é tão atual.
O seu espírito indómito não admitia brigas mornas. Se escrevia, temperava o texto com frases picantes, insultuosas, uma espécie de Pepe na hora de marcar o Mbappé. Uma inteligência extraordinária, livresca, oral e escrita e em muitos momentos peguei-me a rir das suas observações. Sobre os judeus, escreve sem dó nem piedade:
“Cito a contragosto o infeliz povinho judeu, que seguramente não deve servir de regra para ninguém, e que (colocando de lado a religião) sempre foi um povo de salteadores ignorantes e fanáticos.“

Percebe-se uma crítica aos mestres e professores. Como livre pensador que foi, vivendo das benesses de reis e rainhas e da venda dos seus livros, saltando de galho em galho quando contrariava os governantes que antes lhe comiam nas mãos, o frasista incorrigível sabia que nada do conhecimento era genuíno na proposição daqueles que doutoravam nas cátedras. Não à toa, afirma:
“As pessoas de letras que mais serviços prestaram ao reduzido de entes pensantes espalhados pelo mundo são os letrados isolados, os verdadeiros sábios encerrados nos seus gabinetes que não argumentaram nos bancos das universidades nem disseram as coisas pela metade nas academias; e esses têm sido quase todos perseguidos. A nossa miserável espécie é feita de tal maneira, que aqueles que marcham em caminhos já batidos atiram sempre pedras aos que ensinam um caminho novo.“
Agora, finda a leitura, posso abri-lo ao acaso e ler (rir) de alguma sentença do Mestre. E são tantos verbetes: Inquisição, Lei Natural, Liberdade de Pensamento, Literatura, Metafísica, Necessidade, Religião (termos mais grandiloquentes) até Inundação, Seita e Superstição. Lia e vinha-me à mente o seu mausoléu no Panteão de Paris, com a sua estátua no pedestal e fico a imaginar se fosse o caso de a estátua pensar, o que ele diria dos turistas japoneses e coreanos que ficam a tirar selfies, incluindo o maldito pau de selfie que quase nos mutila os olhos?
O que ele pensaria de terem degolado um professor em França pelo simples facto deste ensinar aos seus alunos liberdade de expressão? Certamente Voltaire contrariaria os próprios editores da polémica magazine Charlie Hebdo, que chegariam à conclusão de que para tudo tem limites.
Lembro-me aqui do presidente francês Charles de Gaulle que vetou uma prisão a Jean-Paul Sartre (1905-1980), mesmo este estando a publicar artigos incendiários e revolucionários que contestavam a sua autoridade. Sabedor da história, a de que prisões e martírios fornecem a causa ao adversário, saiu-se bem com esta: “Não se prende Voltaire.“

Dá para perceber que o próprio Voltaire se transformou num verbete: o polemista defensor da liberdade de expressão, mas que se insurgia quando lhe contestavam, sendo adepto talvez da seguinte ideia: “Estúpidos, a natureza deu-me o dom da inteligência, e apenas a mim. Se não gostaram do que eu falei, o problema é vosso, desde que me respeitem. E se escreverem algo que contraponha as minhas ideias, atribuirei a vocês as piores ofensas, bando de imbecis.”
Despeço-me aqui convidando-vos a lerem o “Dicionário Filosófico”, do início ao fim ou de forma alternada. O prazer será certo e não se policiem se esgares de sorrisos ocorrerem durante a leitura. Comigo isso aconteceu.
Eis mais algumas das suas provocações:
“O Sr. Perry diz que os moscovitas vendem-se facilmente; sei bem a razão. É que a sua liberdade não vale nada.“
“Diz muito corretamente que não foi a caridade cristã que quebrou as correntes da servidão, uma vez que essa caridade as apertou durante mais de doze séculos. Poderia também acrescentar que entre os cristãos, os próprios monges, tão caridosos, ainda possuem escravos, reduzidos a um estado horroroso sob o nome de ‘amortalháveis’, ‘mãos-mortáveis’ e ‘servos da gleba’.“
“O fanatismo, em relação à superstição, é o mesmo que o arrebatamento é para a febre ou a raiva para a cólera. Aquele que experimenta êxtases, visões, que confunde os sonhos com as realidades e as suas imaginações com profecias, é um entusiasta; aquele que alimenta a sua loucura com o crime, é um fanático.“
“Deus não pretendia ensinar filosofia aos judeus. Podendo elevar o espírito dos judeus até à verdade, preferia descer até eles.“
“Impõe-nos certamente concluir que quem entender perfeitamente este livro deve tolerar os que o não entendem; porquanto aqueles que nada entendem, não é por sua culpa que não o entendem. Mas os que nada compreendem devem tolerar também os que compreendem tudo.“
“É preciso grande arte em todas essas imaginações inventivas e mesmo nos romances. Os que não a possuem são desprezados pelos espíritos bem formados. Um juízo inigualável nos contos de fadas, mas essas imaginações fantásticas, desprovidas de ordem e de bom senso, não podem ser estimadas. São tidas por fraqueza e condenadas pela razão.“
Se queres que OBarrete continue ao mais alto nível e evolua para algo ainda maior, é a tua vez de poder participar com o pouco que seja. Clica aqui e junta-te à família!