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Porque A Arte Somos Nós

O filme “Contado Ninguém Acredita“, título em português, do realizador Marc Forster e que conta com Will Ferrell, Emma Thompson, Maggie Gyllenhaal e Dustin Hoffman no elenco é uma comédia/fantasia de 2006. Esta equipa de estrelas já nos chama muito a atenção, e o enredo versa sobre um auditor da Receita Federal, Harold Crick, que tem uma vida regrada e extremamente sem graça, que passa a escutar vozes que narram a sua entediante rotina. Pensando tratar-se de um colapso nervoso, procura uma especialista que lhe informa tratar-se de esquizofrenia.

Não conformado, procura ajuda no trabalho e vai se encontrar com um prestigioso professor de Teoria Literária, Dr. Jules Hilbert (muito bem interpretado por Hoffman), que passa a maior parte do tempo deitado descalço, refletindo sobre os inúmeros livros que já leu sorvendo café ou nadando na piscina da universidade.

Um enredo dentro de um enredo, o certo é que a reclusa escritora Karen Eiffel (numa convincente atuação de Emma Thompson) está a escrever o seu aguardado romance e coincidentemente, tentando dar um fim ao seu personagem, que é exatamente o sujeito de carne e osso na pele do auditor fiscal. O roteiro é clássico ao abordar o bloqueio de nós escritores, a imaginação para lá de fértil e as pesquisas de campo, sendo que observar chega a ser o trabalho mais custoso do escritor, de forma a dar verossimilhança à trama.

Will Ferrell (Harold Crick)

Assistindo ao filme, percebi o quanto de poder conferimos a nós mesmos, criando personagens que às vezes ganham vida própria, e isso é que é o belo na tricotagem deste tecido. A excentricidade dos autores aparece como marca e a realidade alternativa parece atestar aquela máxima de Oscar Wilde (1854-1900), de que “entre a vida e a arte, a verdade é atributo desta última”.

Nos encontros com o professor, Harold, que é pouco afeito à leitura de romances, ouve com atenção as pérolas proferidas. O Dr. Jules discorre sobre os clichés e confesso que me senti alfinetado em alguns momentos. Exemplo: um par que sente aversão um pelo outro no início da trama terminará junto, e ele chama a isso de comédia. Um personagem morre no final e denominamos isso de tragédia e assim por diante.

Fumando inveteradamente, a escritora amargurada recebe a tutela de uma agente literária para lhe vigiar os passos. Já o auditor fiscal é apanhado pelo cupido ao auditar a padeira e confeiteira Ana Pascal (pela bela Maggie Gyllenhaal) e aqui a predição do professor parece confirmar-se: tanta antipatia entre ambos fatalmente desembocaria no tradicional “Final Feliz” e “ficaram juntos para sempre”, pois nada mais amorfo que a relação entre um sujeito certinho e uma empresária nada ortodoxa e meio anarquista, segundo as suas próprias palavras.

Criatura e criador? Mundos paralelos? A vida do auditor e da confeiteira existem realmente? Ou está tudo na cabeça da escritora? O bom da película é observarmos todos os clichés, a insistência para atestar a idoneidade da padeira, que ajudava os desfavorecidos, mas não declarava isso à Receita, deixando-a em dia com o fisco. Afinal, numa ardorosa paixão não pode haver espaço para a vilania, por mínima que seja.

Maggie Gyllenhaal (Ana Pascal)

Coincidentemente, quando o auditor fica a saber que a voz que ouve de forma paranormal é o da autora, e essa revelação dá-se no escritório da universidade, é chegada a altura de outro cliché: a criatura vai ter com o criador, no caso, a escritora. Ela concede-lhe uma cópia e este a entrega ao professor que lê os originais. Ele fica acachapado (e isso não é pouca coisa, a ver a sua convidativa biblioteca com os seus volumes) e dá o parecer ao infeliz que sim, ele teria que morrer pelo bem da história.

Mas não seria injusto ocorrer esta morte no exato momento em que o nosso protagonista estava no auge da sua vida, amando uma bela mulher e a viver as delícias da paixão? A minha humilde contribuição ao drama diz que as melhores histórias de amor são aquelas não vividas e está aí o épico de William Shakespeare (1564-1616), “Romeu e Julieta“, que não nos deixa mentir.

O filme ainda nos irá apresentar clichés tais o extremado ato de heroísmo, a necessidade da amada em saber disso, afinal, de que nos vale um herói que não nos possibilite a publicitação? E termina em forma de um convite a refletirmos mais sobre o adágio de Oscar Wilde. O que poderia terminar excelente, acaba meia boca.

Enredo dentro de um enredo, vozes oniscientes e um livro dentro de um filme. Uma visão de biblioteca e no longínquo ano de 2006 (perdoem-me a minha ironia) sabermos que algumas pessoas ainda se propunham a ler livros, e o deleite que é ter Emma e Hoffman no nosso campo de visão. O todo é honesto e o tempo muito bem passado sentado a assistir a esta história que, sim, é mais estranha do que a ficção.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 2.5 out of 4.

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