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Nesta análise, irei escrever sobre o livro “Quando Nietzsche Chorou” (Editora Ediouro, 406 páginas). Parece existir um ranço de catedráticos em Filosofia quando veem pensadores a ser romanceados ou a ser alvo de biografias. No primeiro caso, entendo ser saudável a iniciativa, desde que seja bem trabalhado e com notas de esclarecimentos em alguma parte do livro. “Quando Nietzsche Chorou” é um destes casos.

O autor Irvin D. Yalom promove um encontro entre o médico vienense, o judeu Josef Breuer e o filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Um certo Sigmund Freud aparece em partes da obra, como o promissor talento no campo da psicanálise e que partilha as suas experiências com o Dr. Breuer. Esses encontros são romanceados, embora Freud fosse realmente um dos discípulos do médico.

Quando está de férias em Veneza (Itália), o Dr. Breuer recebe a inesperada visita de Lou Salomé, 21 anos, que lhe pede para se encontrar com um certo professor, Friedrich Nietzsche. O inusitado convite busca salvaguardar o “futuro da filosofia alemã”, nas palavras de Lou. Esta está preocupada com os devaneios mentais do autor de “Humano, Demasiado Humano“. Assim que soube, através do irmão Jenia, que Breuer havia curado uma paciente através da técnica de mesmerismo (hipnose), Lou Salomé procura ajuda para Nietzsche. A empreitada é arriscada, uma vez que Nietzsche havia rompido os laços com a própria Lou e Paul Reé. Doravante, Nietzsche abraçou a solidão de forma visceral.

Retrato de Friedrich Nietzsche

A descrição do personagem Nietzsche conta exatamente a realidade da condição médica do homem. Acometido por uma forte enxaqueca, reunia em si um quadro clínico lamentável – dores estomacais, náuseas, vertigens, depressão, perda ocasional da visão, mudança repentina de humor e o mais comprometedor: o paradoxo entre o homenzinho franzino, com um portentoso bigode e um poço de educação e mesura e o escritor duro, áspero, virulento, forte e blasfemo que era.

Experimentando a filosofia na pele e nas atitudes, ele resolveu escalar a sua montanha particular do entendimento. Duro com ele mesmo, não reivindicava nenhuma atenção ou compaixão. Desfazia-se dos poucos amigos para vivenciar a mais dura das verdades: a de que “toda amizade recai obrigatoriamente no interesse, daí a traição”. Quem ler este livro verá o completo abandono de um homem consigo mesmo.

Breuer e Nietzsche: o encontro

Breuer surpreende-se com o imenso bigode do seu cliente. O jeito cândido de Nietzsche esconde uma personalidade agitada, arredia. Este sofrera uma dura traição, alimentada pela irmã Elizabeth, que o envenenara com Salomé, que seria uma discípula do promissor filósofo. Sofrendo as dores do amor, Nietzsche refugia-se na literatura, o seu projeto particular, pois, segundo ele, estava para “parir” vários livros que teriam sucesso um século depois, pois acreditava que os seus escritos só seriam compreendidos no ano 2000. Esse seu projeto extemporâneo só erra pois, a meu ver, Nietzsche é um filósofo para o ano 3000.

A sua filosofia é libertária demais, para poucos, e ele mesmo alertava que dada a elevação dos seus pensamentos, estes tornavam-se frios, pois indicavam ares de uma elevada montanha. Para os seus leitores desavisados, o risco de ficarem constipados e contraírem a covid-19.

O médico e fisiologista austríaco Josef Breuer

É com essa personalidade invulgar que se deparará o Dr. Breuer, homem preso aos grilhões de um bem-sucedido casamento, cinco filhos e um nome a manter, ou seja, o honrado cidadão respeitável, um homem que frequentava as altas rodas da aristocrática sociedade vienense. O contraponto entre interlocutores tão díspares permeia a riqueza da obra. Ao invés de curar o corpo do filósofo, o médico tentará um empreendimento mais ousado: curar a alma. Nietzsche só aceitara o tratamento por entender que estaria a dar a última cartada de modo a erradicar, ou minorar, o seu quadro clínico decadente. Mal sabia ele o jogo psicológico do qual estava a ser protagonista.

A clínica em si

Na Filosofia Clínica, aprendemos o momento mágico do encontro, a entrega e um voto de confiança entre filósofo clínico e partilhante. Por mais que tenhamos um domínio na relação terapêutica, isso nunca indicará poder coercitivo, indução, etc. A clínica fica comprometida em “Quando Nietzsche Chorou”, pois perde-se a perspetiva médico-paciente, uma vez que o filósofo se torna o professor e o médico, aprendiz. Envolto no véu da grandeza e cada vez mais habitando a sua torre de marfim, Nietzsche passeia de braços dados com o seu desespero. O Dr. Breuer é capturado por esse comportamento.

O autor é feliz ao permear vários pensamentos nietzschianos no decorrer da fala do seu personagem. Cada frase soa como uma sentença, assemelhando-se ao chicote da mais fria das verdades. O filósofo é extremamente impulsivo, inteligente. O que se perde na perspetiva clínica ganha-se em filia, amizade.

Por que ler este livro?

“Quando Nietzsche Chorou” é boa literatura e isso basta. Com uma linguagem acessível e certamente um convite às obras mais emaranhadas de Nietzsche. Sugiro não tentarem entender o autor logo de imediato. Os seus trabalhos requerem cachecol, bons paletós e botas contra o frio. Deixem-se seduzir pela poética bem elaborada, pelos aforismos, pelo sangue que permeia a pena. Enquanto não leem qualquer outro escrito do alemão, este livro aqui abordado é um bom início. Aventurem-se.

O escritor norte-americano Irvin D. Yalom

Trecho da obra:

Excertos das Anotações de Friedrich Nietzsche sobre o doutor Breuer de 9-14 de dezembro de 1882

A fascinação de um ‘sistema’! Já fui presa dele por bastante tempo hoje! Acreditei que a supressão da raiva por Josef estivesse por detrás de todas as suas dificuldades e me exauri tentando incitá-lo. Talvez a longa repressão das paixões o altere e enerve.

… Ele se apresenta como bom; não comete nenhum mal, a não ser contra si e a natureza! Preciso de fazer com que deixe de ser um daqueles que se julgam bons, porque eles não têm garras.

Acredito que ele tenha que aprender a blasfemar antes que eu possa confiar na sua generosidade. Ele não sente raiva! Terá tanto medo de que alguém o magoe? Será por isso que não ousa ser ele próprio? Por que deseja somente pequenas felicidades? E ele denomina isso virtude. O seu nome real é covardia!

Ele é civilizado, polido, um homem bem-educado. Ele domou a sua natureza selvática, transformou o seu lobo num cão de raça. E ele o denomina de moderação. O seu nome real é mediocridade!

Ele agora confia e acredita em mim. Dei a minha palavra de que me esforçarei para curá-lo. Mas o médico deve primeiro, como o sábio, curar-se a si próprio. Somente então poderá o seu paciente contemplar com os seus olhos um homem que se cura a si próprio. Contudo, eu não me curei a mim mesmo. Pior, sofro das mesmas aflições que acometem Josef. Estarei, pelo meu silêncio, cometendo aquilo que jurei jamais fazer: traindo um amigo?

Devo falar das minhas aflições? Ele perderá a confiança em mim. Isso não o prejudicará? Ele não dirá que, se eu não me curei a mim mesmo, não posso curá-lo? Ou ficará tão preocupado com a minha aflição que abandonará a tarefa de lutar contra a sua própria? Sirvo-o melhor através do silêncio? O reconhecendo que ambos estamos igualmente afligidos e temos que unir forças para encontrar uma solução?

… Hoje vejo quanto ele mudou… menos tortuoso… e não mais tenta me adular; não mais tenta se fortalecer demonstrando a minha fraqueza.

… O ataque frontal aos seus sintomas, que me pediu para lançar, é a mais terrível chafurdice em águas rasas que jamais empreendi. Eu deveria ser alguém que eleva, não que rebaixa! Tratá-lo como uma criança cuja mente precisa de um tapa quando se comporta mal está rebaixando-o. E rebaixando-me também! SE UMA CURA REBAIXA O MÉDICO, CONSEGUIRÁ POR ACASO ELEVAR O PACIENTE?

Há de existir um caminho mais elevado.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 3.5 out of 4.

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