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“O Xangô de Baker Street”, é uma obra do escritor Jô Soares (Editora Companhia das Letras, 349 páginas). A primeira impressão desse livro data de 1995 e fez parte da lista de best sellers no Brasil, com uma vendagem de aproximadamente 600.000 exemplares.

Nesse romance, Jô adota como cenário a cidade do Rio de Janeiro no ano de 1886, época em que o Rio contava com apenas 400.000 habitantes, dois anos antes da Abolição da Escravatura. Jô Soares toma emprestado do escritor inglês Conan Doyle o detetive Sherlock Holmes, um perito na arte da dedução, sempre acompanhado do Doutor Watson (elementar, caro leitor!). Os dois são convidados a resolver dois casos sobrepostos: o roubo de um violino Stradivarius e a atuação de um monstro que vinha mutilando mulheres.

Desembarcando no Brasil, e logo rececionados pelo imperador Dom Pedro II, Holmes e Watson travarão conhecimentos com esse país inóspito. Enquanto Watson se mantém à reserva, Jô faz Sherlock Holmes abrasileirar-se com o consumo desmedido das feijoadas, vatapás e tudo o mais que faz parte da nossa culinária. Trabalhando em conjunto com a polícia local, Sherlock Holmes pouco consegue descobrir acerca do serial killer, expressão cunhada por ele e que se traduz por “assassino em série”. Nota-se no enredo a paródia e humor refinado de Jô Soares no que diz respeito aos mal-entendidos comuns a todo o estrangeiro.

O escritor brasileiro Jô Soares

O autor também discorre sobre o “estrangeirismo francês” em terras tupiniquins, com a notável atriz francesa Sarah Bernhardt vivendo dias de rainha, dada a bajulação do público. Aqui outra vez o autor toma emprestada uma figura real e faz dela ficção, daí a inscrição no final do romance: “Esta é uma obra de ficção. Mesmo as personagens históricas nela apresentadas são tratadas de forma ficcional“.

Ao longo da trama, Jô investiga o que passou a ser denominado de “caipirinha” (cachaça, limão, açúcar e gelo); segundo ele, esse nome é uma referência ao Dr. Watson. A vida nada sexual de Sherlock Holmes encontra a companhia de uma bela mulata fogosa, no humor dos atos não consumados. Alude também ao hábito de Holmes usar cocaína, método empregado pelo médico Sigmund Freud para fins relaxantes.

Uma outra característica interessante são os diálogos sucintos, permeados de humor e que mostram aquele jeito meio cândido e irónico de quem assistia ao programa de televisão da Globo, Programa do Jô. O autor esmiúça os detalhes, procura pistas no impensável e deixa sempre o leitor com uma sensação de “déjà vu nunca visto”. Este tipo de obra, misturando personagens reais a seres imaginários, é dificultosa se pouco trabalhada. É que Sherlock Holmes tornou-se num personagem tão forte que suplantou o criador, Doyle. Da mesma forma que, a título de exemplo, Miguel de Cervantes passou a ser secundário para o famoso cavaleiro “Don Quixote de la Mancha“.

O ator Benedict Cumberbatch foi um dos últimos a interpretar o papel do famoso detetive, mais precisamente na série “Sherlock” (2010-2017)

Embaralhando tudo isso, Jô trabalha muito bem, sendo fiel à geografia meio plana do Rio, a começar pelo valioso mapa na introdução à descrição dos incipientes teatros e a uma vida boémia que acompanhava os moradores daquela que viria a ser considerada a “Cidade Maravilhosa”.

Existe o crime perfeito? Sherlock Holmes, com a ajuda da polícia brasileira, conseguirá desvendar esse mistério? Porquê que o brasileiro se veste à moda dos europeus, sendo aqui um país tropical? O que pode levar um assassino a cometer crimes tão repugnantes? São algumas perguntas apropriadas e que levarão o leitor a penetrar no livro como investigador também. O final é surpreendente, trazendo à tona, na sua última linha, uma personagem nova que vem justificar todo o enredo anterior.

Um livro formidável, inteligente, refinado! Recomendo também a leitura de “O homem que matou Getúlio Vargas” (1998), com as mesmas características do livro aqui comentado.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 4 out of 4.

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