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Depois da gripe espanhola, do HIV, da H1N1, da gripe do frango, do mal da vaca louca, da gripe suína, do ébola e da covid-19, a humanidade viu-se vítima de um estranho acontecimento. De um surto ocorrido em Arequipa, no Peru, o que significava ver pessoas a tombar pelas ruas e a falecer após alguns minutos? Imagens de satélite mostravam dezenas, centenas, milhares; e todo o torpor adveio de explicações confusas; e obviamente, cientistas foram solicitados para darem os seus pareceres. Como a coisa estava restrita aos Andes peruanos, e todos sabemos da malha aeroviária, logo o estranho fenómeno se espalhou pela Bolívia, Venezuela, Colômbia, Chile, partes do Brasil e chegou à Europa e aos Estados Unidos com estrondo.

Se chegou ao Primeiro Mundo, podemos afirmar que estávamos diante de uma epidemia gravíssima, sem causa conhecida, e logo a Organização Mundial da Saúde (OMS), que já abusara do direito de bater cabeça por ocasião da covid-19, viu-se em apuros. Um avião transportou os membros desta digníssima instituição, destino a Tóquio, pois assim, de longe, poderiam deliberar sobre esse cenário de zombies apocalípticos.

O estranho é que a doença chegou à Ásia, pois um dos diretores da instituição se havia encontrado com uma prostituta tailandesa e em pouquíssimo tempo as pessoas estavam a tombar fulminadas por essa praga divina. Os jornalistas das principais redes de televisão mundiais entraram em quarentena, e aventaram se não seria uma guerra bacteriológica impetrada por um dos grandes Eixos do Mal, comumente atribuídos ao Irão, Sudão, Coreia do Norte ou Paquistão.

Steven Spielberg não teria tamanha imaginação para cenas tão dramaticamente reais: grupos de pessoas tombavam pelas ruas, como se fossem atingidas por raios; e quando a cena tinha como pano de fundo o Museu do Louvre ou mesmo o Vaticano, causava mais impacto. O setor da publicidade dos grandes conglomerados de media faturou muito nesse período, pois companhias aéreas prometiam viagens seguras a praias do Taiti, mesmo que o noticiário mostrasse um saguão de aeroporto em Bruxelas com duas centenas de indivíduos fulminados pelo estranho fenómeno.

No Brasil, evangélicos reunidos num sítio em Atibaia, e que contavam com excelentes canais de divulgação, como jornais impressos, rádios e TV, afirmavam perentoriamente que estávamos diante do Juízo Final, que Deus estava a vingar-se da humanidade e que o fim seria trágico para os ímpios, apregoando que apenas os pertencentes àquela seita estariam a salvo, desde que pagassem os dízimos de 10% religiosamente. Durante esse período, essas organizações lucraram enormemente, também com a venda de frascos de óleo que curava aquela anomalia inimaginável.

A coisa não estava nada boa. O mundo decretou o lockdown, mas os brasileiros, inventivos como sempre, e a dizer da nossa natureza de a tudo relevar, resolveram lotar as praias de Copacabana, do Guarujá e tantas outras do nosso vastíssimo território, mesmo assistindo à eliminação de grupos inteiros que tombavam na areia, claro, tudo devidamente transmitido pelas TVs de notícias 24 horas.

E foi da TV o anúncio de que estávamos diante de um “supervírus”, que era 3.456.235 vezes mais potente que a covid-19. Como ela chegou a este número exato, não temos como precisar, pois cientistas já discutiam bastante entre si se o número exato era mais um ou menos um, sendo essa discussão fora do alcance de todos nós, reles mortais. Anunciaram a realização de um congresso para discutirem a fundo a precisão do número, em Nova Iorque.

Nos eventos literários ocorridos nas bienais e na FLIP, sobremaneira dedicados às investigações psicológicas acerca do fim prenunciado de todos nós — e para logo — , editores investiram rios de dinheiro, pois pressentiam que seriam os últimos da História da Humanidade. Assim ocorreu, e desafiando o “supervírus”, debatedores ficaram perplexos quando parte do público tombou na tenda e no local da palestra, e a mediadora ficou ainda mais aterrorizada, quando a grande atração internacional do evento, a escritora hondurenha que defendia os povos indígenas de todo o mundo, tombou fulminada, babando as vestes, e tudo aquilo a ser transmitido pelo YouTube.

Quanto ao mais, nada sei dizer. Apenas que os meios de comunicação pifaram, análogos à internet, e caminhamos fadados ao incerto, com saques nos supermercados; e fora o “supervírus” em si, temos que nos defender diuturnamente de uma plebe ensandecida que fica “tocando o terror” e assim a coisa vai de mal a pior.

Escrevo esta carta a lápis e coloco-a numa garrafa lançada ao mar. Como que fulminado por algo que parece torcer a minha traqueia, tombo e não sou mais eu. Sou o nada!

Marcelo Pereira Rodrigues

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One thought on “O Supervírus

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