OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

Podem encontrar o sexto capítulo aqui!

Capítulo VII

Cíntia não tinha noção para onde o príncipe queria levá-la. Sua afiada mente calculava a todo momento os caminhos que haviam feito, mas, mesmo assim, não conseguia adivinhar o seu destino final. No início, pensou que ele estava procurando um garçom, levando-a apenas para tomar uma bebida. “Talvez queira algo que o ajude a engolir todo o vexame que passamos com o seu pai, ou esteja apenas com sede”. Todavia, quando estavam perto de um garçom, ele mudou totalmente de rumo.

Com olhos atentos, viu que estavam indo para debaixo das escadas. “Pode ser que ele queira um lugar mais escuro, para afastar olhares indesejados”. Contudo, mais uma vez, ele desviou do caminho, partindo, agora, em direção aos dançarinos. “Só espero que ele não me convide para dançar de novo”! Pensou temerosamente. Porém, foi quando ele fez novamente a curva, que ela percebeu o que estava acontecendo. E, sussurrando, resolveu interrogá-lo.

— Por um acaso você está me copiando? — arqueou uma sobrancelha e estreitou os olhos, por mais que não pudesse mirar diretamente em seu rosto. Por dentro, sentia uma pequena raiva por não ter conseguido adivinhar antes que era o mesmo truque que havia usado mais cedo.

— Vamos só dizer que vi uma dama usando essa artimanha mais cedo, e, devido ao sucesso, resolvi fazê-lo também. — Vislumbrava-a pelo canto dos olhos, enquanto a guiava cuidadosamente em meio à multidão. — Afinal, acho que concorda que não devemos chamar mais atenção do que já fizemos. Eu, por exemplo, fico muito incomodado quando cada passo que dou está sendo vigiado.

— Só espero que o local que deseja se esconder não seja apertado e escuro. — Soltou uma leve risada. Estava se divertindo com tudo aquilo. — Ou, se nos pegarem, aí sim teremos problemas com seu pai.

— Fique tranquila, o lugar para onde vamos é muito mais ousado…

— Você usa minha técnica de escape e me leva a um lugar ousado? Esse não é o príncipe e general Tales que conheço. Você sempre foi recatado, seguindo as ordens de seu pai à risca. Posso saber o que aconteceu?

— Bem, estive observando e aprendendo com a melhor. — Cíntia viu em partes surgir um sorriso no rosto do rapaz. Novamente ela se esquentou e ficou corada. Pelo visto, tudo que havia estudado sobre Tales estava errado. Precisava aprender mais sobre o rapaz.

O príncipe era, realmente, um caso estranho para a guerreira. Como em um passe de mágica, todos os seus medos, preocupações e vexames que havia enfrentado naquela noite simplesmente desapareceram. À medida que corriam pelo salão, sentiu seu humor melhorar. Um sorriso brotou em seus lábios, e, por alguns segundos, deixou, apenas, se levar pelo rapaz, aproveitando cada momento que passava ao lado dele. Enquanto isso, sua mente ficou cada vez mais leve, ao ponto de esquecer que ele era um general do reino inimigo, não podendo confiar nele.

Depois de um tempo rodopiando pelo salão, quando as pessoas não conseguiam mais identificar aonde eles estavam, Tales a puxou para um canto escuro, em direção a um lugar onde havia um trânsito bem menor de pessoas. Ao chegar mais perto, a general viu uma pequena porta de madeira, bem simplória. “Provavelmente, esta é a entrada dos empregados. A que conecta o salão à cozinha e ao resto do castelo”. Deduziu. “Mas por que Tales estaria me levando para lá”?

Sentiu a adrenalina correr em seu sangue. “Será que ele sabe do meu plano”? Entretanto, antes mesmo de descobrir a resposta, o príncipe abriu a porta e fez sinal para que entrasse. Os dois deram uma última conferida para ver se estavam sendo observados, e, ao notarem que, mais uma vez, a tática havia dado certo, Tales fechou a porta.

Estavam em um corredor escuro, estreito e que cheirava a mofo. A passos apertados, iam em direção à luz do outro lado, fazendo o mínimo possível de barulho. A claridade se expandiu, dando origem a uma enorme cozinha, digna de um castelo como aquele. Com rapidez, eles encostaram seus corpos contra a parede do corredor, deixando só os tornozelos e os pés na claridade. Por mais que a cozinha estivesse vazia, – afinal, todos os empregados estavam servindo no baile – os dois sabiam que alguns guardas estavam patrulhando o castelo. No entanto, quando perceberam que não havia ninguém ali e que estava tudo seguro, adentraram o cômodo.

Em sua passagem rápida pela cozinha, Cíntia conseguiu ver pelo canto do olho um armário enorme de madeira maciça que estava posicionado diagonalmente entre um dos cantos do cômodo. Em uma de suas laterais, havia uma fenda discreta pela qual passaria exatamente uma pessoa, assim como ouvira em uma de suas missões de espionagem. “A porta secreta deve estar ali atrás. Aquela é, provavelmente, a entrada que dá acesso ao corredor da sala dos relatórios”.

Lembrou de sua missão e de Bella. Instintivamente, queria ir até lá para ver se a princesinha estava se saindo bem. Porém, uma mão a puxou na direção contrária, a levando para uma escadaria em formato de caracol. Ela estava com Tales agora. Nunca poderia ir até lá com ele ao seu lado. Desistiu da ideia e começou a subir as escadas. Por mais que sua mente estivesse ansiosa, não arriscaria fazer com que o príncipe suspeitasse de seu plano. Só colocariam as duas em perigo. E, dando uma última olhada no armário, desejou com todo seu coração que Bella estivesse bem.

Com a mesma cautela que na cozinha, os dois seguiam pelos corredores e salões do castelo de Carbunculus. Hora ou outra, ouvia barulhos de passos, escondiam, esperavam o guarda passar, para depois continuar. Como a guerreira não conhecia o castelo, era Tales que ia na frente, mostrando todo o caminho. Enquanto isso, Cíntia tentava assimilar o máximo de informações possíveis, calculando e formando mapas. Todavia, essa não era uma tarefa fácil. O castelo era enorme. Sem falar que Tales era muito rápido. Não tinha tempo para observar atentamente cada detalhe. Mesmo assim, ela não se deu por vencida.

Sem saber a qual lugar ele queria levá-la, a guerreira começou, então, a analisar a situação e preparar-se para o pior. “E se for uma armadilha”? Respirou fundo. Agora era tarde demais para desistir. Não tinha outra opção. Teria que confiar no cavalheiro à sua frente. Mas, por garantia, deixou seus músculos e sua cabeça de prontidão. Estavam prontos para uma possível fuga, caso fosse preciso. “Se ele pensa que pode me enganar, está muito errado”!

— Estamos quase lá! — falou o príncipe animado após reconhecer a passagem em que estavam. Aos poucos, ele foi diminuindo sua velocidade, até parar por completo em frente a uma enorme porta de madeira. Precisou de alguns segundos para recuperar o fôlego, e, ao ver a face impaciente de Cíntia, apontou em direção à porta, com um sorriso: — Era este o lugar que queria te mostrar.

— Se você acha mesmo que dar várias voltas no castelo conseguiu me confundir, está muito equivocado! — cruzou os braços e estreitou os olhos. Estava na hora de descobrir o que ele realmente estava aprontando. — Não vou cair com facilidade em suas artimanhas. Consigo muito bem escapar daqui e voltar sozinha para o baile, se for preciso.

— O quê? — perguntou meio incrédulo. — Não, não, não. Entendeu tudo errado! Não tem nenhuma armação. Não tenho a intenção de enfrentar você…

— Posso saber, então, o porquê de passarmos tantas vezes pelos mesmos lugares? Só em um corredor, chegamos a atravessar quatro vezes. Você, por um acaso, achou que eu não reconheceria esse truque? Repito o que disse: não tente nada de gracinhas ou te deixo e volto para o salão de baile sozinha!

— Dá para relaxar? Isso não é um truque! É só que… — hesitou.

— É só o quê? — o forçou a falar.

— Pode ser que eu estivesse um pouco perdido… — disse meio constrangido, enquanto ficava vermelho e olhava para os seus pés. “É agora que não consigo mesmo o respeito dela”. — Este castelo é imenso, e isso me confunde às vezes. Não sou um espião tão bom quanto você…

A general, vendo a situação do garoto, soltou uma pequena risada e colocou a mão em seu ombro.

— Não precisa ficar envergonhado! Admitir sua fraqueza é o primeiro passo para melhorar sua habilidade. Temos sempre que conhecer a nós mesmos primeiro para poder ajustar nossos pontos fracos e, assim, ficarmos mais fortes. Para melhorar essa aptidão, recomendo que volte a ler o Manual de um Grande General, principalmente os capítulos que falam sobre Localização e Vantagem Territorial e Guia de Fortificação dos Cinco Reinos. Há dicas muito úteis lá…

Tales soltou um pequeno sorriso torto, enquanto encarava-a de lado. “Aquela era, realmente, a guerreira Cíntia de quem eu ouvi tantas histórias sobre. Forte, astuta, inteligente, independente”… Seu coração começou a acelerar, suas mãos estavam ficando suadas. Sentia como se seu coração fosse saltar do peito. Estava, a cada segundo que passava, mais encantado com aquela garota. Foram tantas às vezes que desejou esse encontro. E, agora que estavam ali, lado a lado, experimentava uma sensação que nunca lhe havia ocorrido antes. Uma mistura de curiosidade com um forte fascínio. “Quero muito conhecer melhor a mulher ao meu lado”. E não se deixaria perder essa oportunidade.

Já a general passou longos segundos olhando para a porta. Diferente das demais, esta era totalmente esculpida, refletindo suas delicadas imagens em dourado enquanto duas tochas tremulantes iluminavam o pequeno espaço entre os dois. Tentava resolver o enigma, imaginando o que poderia se esconder atrás daquela porta. Todavia, por mais que houvesse estudado sobre o comportamento de Eliseu, não conseguia ter ideia alguma do motivo daquela entrada ser diferente das demais. Muito menos do porquê Tales a havia trazido ali. E, depois de passar algum tempo, resolveu voltar-se ao príncipe, em busca de suas respostas.

— Então, acredito que você não tenha me trazido aqui para me mostrar uma porta… — resmungou, ainda mais impaciente. Se tinha algo que Cíntia não gostava era de não ter o controle da situação.

— Não, vim para mostrar o que têm dentro da sala. — Com um ótimo humor, aproximou-se da porta e a empurrou, soltando um barulho pesado de madeira se arrastando.

Extremamente curiosa, a guerreira se adentrou, seus olhos percorrendo cada centímetro da sala. Contudo, não conseguia enxergar nada. Estava totalmente escuro. As únicas coisas visíveis eram umas manchas nas paredes e uns vultos escuros sem detalhes, do tamanho de um ser humano. Com passos quietos, andava com as mãos à sua frente para não esbarrar em nada. Até que percebeu pequenos pontinhos fracos de luz, e quando olhou para cima, viu um telhado de vidro exibir um belo céu estrelado. Por um segundo, admirou as estrelas e as constelações. Todavia, ainda insatisfeita, resolveu tirar suas próprias conclusões.

— Não vou negar que a vista é muito bonita. — Virou-se para Tales, que continuava a observá-la atentamente. — Contudo, se queria ver o céu, poderíamos ter saído do castelo e ido em direção às carruagens. Seria bem menos arriscado e muito mais fácil.

— Entretanto, não te trouxe aqui para ver as estrelas. — No escuro, a guerreira o viu pegar alguma coisa pendurada na parede, ir para o lado de fora, e acendê-la com a tocha do corredor. Fechou devagar as portas às suas costas e se aproximou de Cíntia, entregando-lhe uma pequena tocha tremulante. E, indo em direção à escuridão, a guerreira percebeu que aquela não era uma simples sala de estar do castelo de Carbunculus. Aos poucos, uma grande galeria se revelava a ela, e, sem fôlego, partiu em buscas dos tesouros ali escondidos.

A arte estava em todo o canto. Desde grandes estátuas de guerreiros com armaduras esplêndidas a pinturas de guerras e batalhas fenomenais. Cada passo que dava, vislumbrava um pouco mais do encanto que se ocultava com a falta de luz. Mesmo com uma pequena chama, podia ver as pinturas saltarem dos quadros e as estatuetas saírem do lugar, tamanha era a expressividade dessas obras.

Rodeada por aquele ambiente de feroz beleza, seus pulsos dispararam como se estivessem em um combate. Ávida por mais, ficou alguns minutos pulando de obra em obra, sempre atenta aos detalhes, seus olhos faiscando pelo deleite. Sentia-se como uma pequena criança, hipnotizada com as maravilhas escondidas em um lugar que sequer imaginou existir. E, tomada por esse deslumbramento, não percebeu a presença de Tales ao seu lado, assustando-se quando o ouviu sussurrar em seu ouvido:

— Vejo que gostou da minha surpresa. — Com uma voz doce e um sorriso maroto, encostou levemente sua mão no ombro da general. Cíntia sentiu-se como se um raio tivesse atravessado seu corpo. Não encontrava palavras para descrever tudo que sentia ali naquele momento.

— Não vou mentir. Esse lugar é incrível! — sorrindo, tentava, ao menos, se manifestar de alguma forma. — Nunca imaginei que existiria um lugar assim. Principalmente aqui, no castelo de Carbunculus. Para mim, o rei Eliseu não era do tipo de pessoa que apreciava arte.

— Pelo visto é sua primeira vez aqui no castelo. — Por mais óbvia que fosse a resposta, tentou usá-la para puxar uma conversa. — Os convidados de Eliseu sempre passam por esta galeria. Ele adora exibi-la.

— Acho que está claro que nunca vim aqui antes. Afinal, se eu, um dia, fosse uma convidada de Eliseu, tenho certeza que a chuva começaria a cair para cima. — Os dois não aguentaram e começaram a rir bem baixinho. Tinham que tomar cuidado com o tom de voz, ou, então, seriam pegos pelos guardas. Mas isso não impediu Cíntia de demonstrar sua animação.

— Bem, sou convidado para vir aqui direto desde que meu pai me nomeou general de Ager. — Continuou o príncipe, aliviado pela reação favorável da guerreira. — Como o reino de Carbunculus é um importante parceiro de Ager, passamos aqui pelo menos uma vez ao mês. E, em cada visita, Eliseu primeiro apresenta a galeria de artes do castelo, contando a história por trás de cada obra. Ao que parece, ele tem uma enorme herança deixadas por seus antepassados, tão grande que não cabe dentro desta galeria. É um legado passado de geração a geração. Cada rei, além de adquirir novas unidades, decora a galeria de acordo com seu gosto, e o restante é guardado delicadamente em alguns galpões pelo castelo. Diz que o acervo é composto por mais de duas mil peças. Acredito que Eliseu foi influenciado por seus anteriores e acabou tomando gosto pela arte, assim como acontecerá com Cássio em alguns anos.

— Olhando a complexidade de algumas obras, — Cíntia parou em frente a uma pintura de uma mãe chorando em cima de um guerreiro morto, em um campo de batalha rodeado por outros corpos ensanguentados. “Mais um entre tantos que mostram dores e perdas.” — Até parece que Eliseu possui sentimentos. — deixou que sua fala povoasse seu pensamento, para depois fazer uma pequena careta, balançar a cabeça e soltar uma risada. “Só parece mesmo”! — Bom, ele não é o único monarca que gosta de artes.

— E quem é esse outro monarca? — perguntou interessado.

— A rainha Catarina. — Enfatizou com orgulho. — Ela é apaixonada pela arte. Mas não de quadros e estátuas. Ela ama música. Todos os dias, durante o jantar, ela contrata uma banda para tocar para ela e seus convidados. E toda semana tem orquestra com ópera nos arredores do castelo, organizados por ela mesma. Ela sempre disse que a música a faz lembrar de pessoas muitos especiais na vida dela. Pessoas que ela perdeu há muito tempo.

— Curioso. Contudo, tenho mais interesse em saber de outra pessoa. — Estreitou os olhos, observando cada detalhe de sua companheira.

— E quem seria essa pessoa? — olhou desconfiada para o príncipe, esperando alguma armadilha de seu acompanhante.

— Você, Cin… Ou melhor, Laisa Sanea. Fale-me algo sobre você. Que tipo de arte você gosta?

— E por que isso te interessaria tanto?

— Quero saber o que se esconde por baixo dessa forte guerreira. Vamos lá! Conte-me!

Cíntia revirou os olhos. Para ela, esse tipo de pergunta não fazia sentido algum. Afinal, ele não traria vantagem ou qualquer coisa do tipo. Entretanto, ao ver dois olhos brilhando com a expectativa, não conteve o riso e decidiu falar:

— Eu gosto de combate. — disse sucintamente, em uma tentativa de acabar com aquele assunto. Não sabia porquê, mas sentia uma sensação estranha em conversar sobre si mesma.

— Há pessoas que consideram o combate uma arte, mas eu não! Quero saber o que você faz no seu tempo livre, para se divertir.

— No meu tempo livre eu treino. Armo táticas, planejo estratégias e pratico muito. Não tem segredo.

— No entanto, deve haver algo que faça para se divertir. Algo que não envolva melhorar suas habilidades como general…

— Bem, — pôs a mão do queixo, pensativa. — Eu também leio.

— Então você lê? — Expressou satisfação por chegar a uma resposta. — Para ser bem sincero, isso não me passou pela cabeça.

— Na sua e na maioria das pessoas. É muito raro uma mulher saber ler. — A guerreira suspirou e fechou os olhos por um segundo, sentindo um peso. Essa era uma das outras tristes realidades das mulheres dos Cinco Reinos.

A verdade era que, no mundo em que viviam, os homens pensavam que as mulheres não eram criaturas pensantes. O único papel da mulher seria crescer, servir ao marido e produzir herdeiros saudáveis. Não cabia, portanto, na criação de uma garota, aprofundamentos em temas relevantes para sua vida, apenas o aprendizado sobre como se comportar e como ser uma boa esposa. E, com a leitura, não foi diferente.

Por ser um conhecimento elitizado, a maioria das pessoas já não possuíam meios de aprender. Só nobres tinham acesso a essa sabedoria, mas, mesmo assim, mulheres desse meio social ainda eram excluídas. Até mesmo a rainha Catarina, que dirigia um reino sozinha, não fora alfabetizada quando era mais jovem. Ela só teve essa oportunidade depois da morte de seu pai e seu marido, quando precisou dos saberes dos livros para alavancar o reino novamente. Mas, no restante dos reinos, as mulheres que sabiam ler estariam em uma classe bem escassa.

— E sobre o que você gosta de ler, Laisa? — depois de um pequeno silêncio, resolveu tentar retomar a conversa. — Deixe-me adivinhar, você lê sobre batalhas e estratégias.

— Também! — riu. — Contudo, quando quero descansar um pouco, leio histórias e lendas sobre guerreiros e reinos. Tantos as que aconteceram quanto aquelas que vem da imaginação do autor. Gosto quando elas têm uma mensagem escondida, que nos levam a refletir sobre o mundo real. Principalmente quando elas nos incitam a fazer nossas próprias histórias, a correr atrás dos nossos objetivos e sermos mais fortes a cada dia. É como se cada história abrisse portas para um mundo novo, sem as preocupações do meu dia a dia. Só é uma pena que essas histórias são apenas sobre homens…

— Se você acha… — lançou um olhar com um sorriso de quem sabe alguma coisa, fazendo com que a guerreira ficasse em estado de prontidão. “Tem algo ali que ele não está me contando”… — Eu também leio. — Mudou repentinamente de assunto. — Entretanto gosto mais de poesias. Daquelas que nos emocionam, e tocam tão fundo que chegam ao nosso coração. Mas não estou lendo mais como gostaria. Depois que me indicaram como general, meu pai tem me cobrado muito. Ele falou que ler essas bobagens é uma perda de tempo. Que eu deveria estar treinando, ao invés disso…

— Engraçado, meu pai já era o contrário… — pronunciou com entusiasmo, sem perceber que estava falando sobre seu passado.

— Então você teve um pai? — perguntou o príncipe curioso. Era a primeira vez que ouvira alguém comentar sobre o passado de Cíntia, e, por mais incrível que parecesse, essa notícia veio dela mesma. — Não sabia que você tinha convivido com seu pai. Pensei que eles tivessem morrido em sua infância. Que você era órfã desde que era uma simples bebezinha.

— Minha mãe morreu sim, quando eu era um bebê. — Abaixou a cabeça, se arrependendo de ter tocado no assunto. “Que péssimo tema que você arrumou em, Cíntia! Está de parabéns! Agora, como eu faço para sair desta situação”? — Mas eu convivi um tempinho com meu pai, antes dele morrer… — sentia uma sensação estranha ao pronunciar essas palavras. Conversar sobre isso nunca era fácil.

— E foi ele quem a ensinou a ler? — vendo o quanto a general estava receosa, resolver forçar um pouco a barra. Sabia que ela não diria mais nada se pudesse.

— Sim, foi ele quem me ensinou a ler. — Depois que ponderou se, ao falar, estaria se pondo em risco, concluiu que esse assunto não era relevante. Estaria tudo bem se continuasse apenas neste segmento. — Nada demais.

— Seu pai parece ter sido uma grande pessoa. — Concluiu, vendo sua companheira encolhida em seu canto.

— Nem tanto. — Com o coração apertado, tentou finalizar o mais sucintamente possível. — Ele pode ter tido alguns momentos de glória, mas, mesmo assim, cometeu muitos mais erros…

— Tipo o quê?

— Ele nunca me viu como eu era. Ele sempre tinha uma imagem pré-formada e nunca deu atenção ao que estava bem na frente dele…

A guerreira se encolheu. Era muito difícil falar sobre a sua infância. Várias lembranças ruins voltaram, e teve que segurar para não chorar e parecer frágil. A verdade é que, tirando a rainha Catarina, nunca contou para ninguém a sua história. Era muito doloroso lembrar, e a última coisa que queria era que as pessoas a achassem fraca. Sem falar que o golpe estava intimamente ligado ao seu passado. Por isso, cada palavra dita por ela tinha que ser muito bem pensada. Não podia colocar, afinal, tudo a perder.

— Meu pai também não é um exemplo de pessoa. — Ao ver a reação de Cíntia, resolveu abrir-se um pouco com ela, tentando deixá-la mais à vontade. — Desde que nasci, eu era ignorado por ele. Por mais que tentasse agradá-lo, ele sempre me deixava de lado. Para ele, o único filho que era digno de sua atenção era seu filho mais velho, o herdeiro do trono. Acabei crescendo na sombra do meu irmão. Demorou muito tempo para notarem minha existência no castelo de Ager…

— Então, por que ele te colocou como general do reino? — Voltando à sua postura normal, ficou ávida para descobrir os entremeios daquela história, e, quem sabe, resolver esse mistério posto há dois anos. — Se ele não importasse mesmo com você, por que ele te daria um dos cargos mais importantes do reino, antes mesmo do seu irmão?

A verdade era que, antes de Tales se tornar general, realmente não se ouvia sobre o segundo filho de Herculano. Em todas as reuniões, estavam presentes apenas ele, o general e Nataniel, seu filho mais velho. Quando anunciaram que Tales seria o novo general, a princípio, pensou que era apenas uma manobra do rei para passar mais tempo no poder. Afinal, o príncipe mais novo não possuía nenhuma habilidade especial no combate que ela soubesse, muito menos tinha mostrado alguma liderança importante no reino. Por mais que não descartasse a hipótese, Cíntia sempre achou estranha essa situação, se atentando a cada detalhe desse enigma. “Talvez, hoje, eu consiga tal resposta. Quem sabe, assim, eu descubra um pouco mais sobre a mente e as estratégias do rei Herculano com os outros reinos”.

— Vai por mim, é só armação. — Fechou os punhos, cerrou os dentes e falou com um tom de voz alto. “Pelo visto, ele estava mesmo com raiva de seu pai”. — Ele nunca pensou em mim e no que eu realmente quero. Apenas me vê como um peão no seu jogo. Aliás, peço desculpas pelo comportamento dele hoje mais cedo. Você não sabe o quão envergonhado estou com tudo aquilo…

— Sem problemas! Sei bem como é quando um pai se torna cego. Além do mais, já passei da fase de me importar com coisas pequenas como aquelas….

— Pais! — exclamou o príncipe, rindo.

— Pais! — retribuiu a guerreira.

Cíntia não aguentou e começou a rir também. Não conseguia disfarçar que estava se divertindo muito. A emoção era tanta que a general esquecera dos infortúnios e dores de cabeça daquela noite. Na verdade, Tales conseguiu levantar o astral dela. Sentia-se leve consigo mesma, não ligava mais para deveres, obstáculos ou temores. Era como se pudesse ser ela mesma, sem medo de represálias ou de ser incompreendida. Uma confiança que raramente possuía com outra pessoa. Principalmente com um homem de um reino inimigo.

Fechou os olhos e desejou que o tempo parasse. Queria aproveitar o máximo possível, por isso voltou a rodar a galeria admirando o restante das obras. Mas, por mais belas que fossem, nada conseguia tirar o príncipe de sua cabeça. Ele a encantou com seu jeito diferente, fazendo-a se indagar se poderia haver mais homens como ele. Olhando-o de relance, ela se perguntava se seria possível a existência de um homem que a entendesse tão bem. “Será que isso tudo é apenas um truque”? Todavia, tudo que encontrava eram um par de olhos brilhantes e um sorriso encantador a observando, fazendo-a corar cada vez mais…

No entanto, um som forte de passos fez com que Cíntia acordasse para a realidade. “Deve ser uns dos guardas patrulhando o castelo”! Rapidamente, a guerreira apagou a tocha que estava em sua mão e puxou o príncipe para perto de si, se escondendo atrás de uma grande estátua de mármore. À medida que o barulho se intensificava, refletia consigo mesma a quão descuidada foi. Por um instante, esqueceu de todas as responsabilidades. Não era uma convidada ali. Estava invadindo um local. E não poderia ser pega.

Respirou fundo. Eles não seriam pegos se ficassem quietos no fundo. Por isso, ignorou a estranha sensação de estar tão perto de Tales, pensando, apenas, em uma distração caso fossem pegos. Como havia previsto, o guarda abriu a porta, fez uma patrulha meia boca e foi embora, assoviando uma suave melodia. Era apenas uma vistoria corriqueira, sem nenhum transtorno. Porém, aquela inspeção havia recobrado a consciência de Cíntia. Precisavam voltar ao baile o mais rápido possível.

— É melhor nós irmos andando. — Proferiu com uma voz bem fria, indo com passos firmes em direção à entrada. Por mais que estivesse no escuro, conseguia enxergar todas as silhuetas das estátuas. Além do mais, não se escutava mais sons metálicos ou qualquer outro barulho, concluindo que não haviam guardas por perto.

 — Mas por que a pressa? — Tales, sem entender a mudança de comportamento da guerreira, apressou para acompanhar o seu passo, até que segurou seu braço à poucos metros da saída. — Você não quer ver o restante da galeria?

— Quem sabe outro dia… — puxou seu braço, afastada de qualquer emoção que o príncipe provocara nela anteriormente. “Não cairei nessa armadilha de novo. Tenho que me manter concentrada, sem distrações. Seja esse seu plano ou não”. — Estamos com o tempo contado. Temos que sair daqui agora!

— Tempo contado? — proferiu surpreso. — Não entendi. Estamos apenas na metade da noite, e o baile durará até o amanhecer. Temos tempo suficiente. Sem falar que, como você mesma disse, é muito improvável que consiga voltar aqui. Não é melhor aproveitar a oportunidade?

Cíntia soltou um suspiro e virou-se para o príncipe. Tinha que ser bem direta naquele momento.

— Agradeço muito pela aventura, contudo, você sabe muito bem que não podemos passar muito tempo aqui. Seu pai, além dos outros reis, deve estar nos procurando no salão de baile. Em algum momento, vão perceber que fugimos, e vão mandar guardas atrás de nós. E, por mais que esteja disposto a caçar uma briga com seu pai e os outros reis, possuo minhas ressalvas, como você já conhece. Por isso, acho melhor terminarmos nosso passeio por hoje, e nos afastarmos por um tempo.

O príncipe a olhou com uma expressão triste, reconhecendo a verdade por trás das palavras da guerreira. Cíntia, por um lado, ficou agradecida por ele ter entendido, todavia, não podia negar que uma parte dela queria passar o resto da noite ali, descobrindo os tesouros escondidos no castelo. Mas, mais do que ninguém, sabia de suas responsabilidades, e, além do mais, não era só ela quem estava correndo perigo. Se os reis mandassem os guardas procurarem, eles poderiam se esbarrar com Bella, e isso colocaria a pequena princesa em maus lençóis. Algo que ela não iria permitir.

— Bem, ao menos tem algum meio de nos comunicarmos? — perguntou Tales esperançoso.

— Comunicarmos? — expressou boquiaberta. — Você fala depois da festa?

— Sim, quero continuar conversando com você. Teria algum meio?

— Está certo… — se pegou meio receosa, se perguntando se seria uma boa ideia manter contato com o príncipe e general do reino inimigo. — Que tal por cartas? Costumo receber algumas cartas de mulheres de Asteroidea. Você poderia inventar um nome falso e mandar aos cuidados da chefe de comunicação Leura. Ela sempre me entrega assim que possível. É só não escrever com nome de uma nobre… — achou um meio menos arriscado, onde ninguém iria levantar suspeitas.

— Pode ser então! — soltou um sorriso iluminado, voltando a uma postura mais confiante. — Tentarei escrever sempre que possível.

— Será um prazer receber suas cartas! — Retribuiu o olhar brilhante, considerando, lá no fundo, que talvez tivesse acabado de fazer um novo amigo.

Deram as costas para a galeria e saíram com muita cautela. Começaram, então, a correr silenciosamente pelos corredores, tomando cuidado para não trombarem com alguns guardas. O caminho de volta acabou sendo mais rápido que o da ida, tendo agora Cíntia na frente, guiando cuidadosamente o príncipe. Na cabeça da guerreira, uma sensação boa se expandia, tomando conta de cada nervo. Aquela noite não tinha sido do jeito que planejara, mas isso não queria dizer que não fora boa. Afinal, se divertiu como nunca antes. Deixou, por um momento, que esse otimismo a dominasse, antes que a ansiedade a tomasse.

Bárbara Kristina

Bárbara Kristina

Bárbara Kristina Generoso Cotta Lopes é natural de Governador Valadares, mas cresceu em Itabirito, local que ama e considera como sua cidade. Cercada por livros desde pequena, já havia se manifestado artisticamente no teatro e no balé, contudo, com a chegada de desafios, novos caminhos foram descobertos, o que fez com que entrasse de vez no mundo da literatura. Aos quinze anos começou a escrever, e aos dezoito publicou seu primeiro livro, “Os Sentimentos das Sombras”, o que a deixou apaixonada por essa área. Agora com vinte anos, possui dois livros publicados, além de grandes expectativas para o futuro.

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