OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

“Pois o que eu odiava mais profundamente e maldizia mais, era aquela satisfação, aquela saúde, aquela comodidade, esse otimismo bem cuidado dos cidadãos, essa educação adiposa e saudável do medíocre, do normal, do acomodado”


“O Lobo da Estepe”

O título é sugestivo e impactante. Trata-se do romance (autobiográfico?) do escritor alemão Hermann Hesse (1877-1962), Prémio Nobel de Literatura em 1946. Pintor e escritor, pacifista, Hesse dialogou acerca dos problemas da sua época e certamente dilemas não faltaram, como as eclosões das duas Grandes Guerras e o seu ceticismo nacionalista que o levou a ser um pária na sua terra natal, por não concordar com as práticas nazistas. Mas vamos esmiuçar um pouco acerca deste “O Lobo da Estepe”?

Da edição que possuo (Civilização Brasileira, 1968, 198 p.), publicado originalmente em 1951, apresenta um senhor de meia idade, na casa dos 50 anos, que se aloja numa pequena cidade alugando um quarto de hóspedes. O misterioso homem vem carregado de livros e de discos dos compositores clássicos. Trata-se, portanto, de um intelectual. Mas carrega em si o aspeto sorumbático daqueles que parecem ter dedicado toda sua vida a buscas metafísicas, sem que isso significasse, contudo, a felicidade por ela mesma.

Hermann Hesse

Populares incultos já advertiram que a leitura de muitos livros atrapalha a cabeça, ora pois. Harry Haller, este é o nome do nosso anti-herói, que carrega em si uma natureza solitária de lobo. Essa fuga para a estepe (caracterizada pelo desterro num quarto de pensão de uma cidadezinha qualquer) já indica isso. Está sempre pelo fio da navalha, e a possibilidade de suicídio é a sua permanente companhia.

Até que sai um pouco de modo a se embebedar numa ordinária taverna e é lá que se surpreende ao ser inquirido por uma rapariga de pouca instrução, mas alegre e satisfeita com a vida, Hermínia, que vive apenas para o prazer imediato. Vence a timidez do professor e propõe-lhe aulas de dança, o que num primeiro momento pode soar como algo ridículo para o empertigado professor. Aqui se faz um paralelo interessante entre o saber e a sua consequente introspeção, pois por vezes carregamos tanto nas tintas intelectuais que nos esquecemos que precisamos também de coisas e situações aparentemente simples.

Hermínia é a nova amiga de Haller, e as coisas passam a uma coloração mais abstrata na vida do eremita. Ele experimenta o sexo não culpado, nos braços de Maria, ele que era viúvo e que vivia às turras com uma amante mais nova que o visitava apenas de vez em quando. O sexo, o sujo da cama, os prazeres sensoriais, o livro fica permeado de pequenos relacionamentos e isso distrai o professor do seu intento funesto. Na verdade, percebemos um enamoramento de Haller com a vida.

Com Pablo, um saxofonista e amigo de Hermínia, com o qual se une num trio amoroso, experimenta alucinógenos que o levam à abertura das portas da perceção. Resumindo, nosso distinto cinquentão viaja no ácido: assim sendo, empreende uma investigação profunda sobre a sua personalidade, uma espécie de peças de um enorme quebra-cabeças e vê-se questionando o real sentido da sua profunda vaidade intelectual, sonha com Goethe e Mozart que lhe riem na cara atentando para o facto de que ele se deveria deixar embalar pelas músicas ordinárias do jazz e pelas canções das rádios, etc.

Goethe

Ele aos poucos tenta domar o lobo, que anseia por sangue o tempo inteiro, se não o dos outros, o seu próprio. Lembramo-nos o tempo todo da navalha. E ele ainda tem que cumprir um pacto com Hermínia e esse é um dos pontos altos do livro. Nas suas viagens alucinógenas, critica o advento do fordismo e o avanço sem freio da indústria mecânica, como quando sonha que está a destruir automóveis numa pista. Homem do seu tempo, Hesse foi o crítico por excelência da necessidade das guerras e desse idiota nacionalismo, que o fez ser proscrito pelos mandatários alemães do III Reich.

O Teatro Mágico Só Para Loucos é o espaço onde acontecem as aventuras deste livro, um convite a deixarmos de raciocinar muito sobre a vida e simplesmente estarmos, quer seja sentados, a beber, a dançar, quem sabe estendermos a uma boa noitada de sexo e nada mais. Um hedonismo sem precedentes. Cabe a crítica ao homem racional e certinho, filósofo e editor de uma certa revista literária brasileira, que sabe muito bem pensar e que de repente esquece-se de viver. Que tenhamos também sensações ordinárias para dialogarmos com a nossa natureza de homem e também com a nossa natureza de lobo.

Thomas Mann, o outro genial escritor alemão de “A Montanha Mágica“, adorou a obra. “O Lobo da Estepe” teve receção um tanto controversa, do que reclama o seu autor em Nota publicada em 1961, cito:

Contudo, parece-me que de todas as minhas obras, “O Lobo da Estepe” é a que vem sendo mais frequente e violentamente incompreendida, e o curioso é que, em geral, a incompreensão parte mais dos leitores entusiastas e satisfeitos com o livro do que dos leitores que o rejeitaram. Em parte, mas só em parte, isto pode ocorrer com tal frequência em razão de este livro, escrito quando eu tinha cinquenta anos e tratando, como como trata, de problemas peculiares a essa idade, cair não raro em mãos de leitores muito jovens“.

Mas a minha dica, quer sejam jovens quer sejam mais experientes, é para não deixarem de ler essa obra atormentada que não deixa de ser magnífica e profundamente introspetiva.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 3 out of 4.

Se queres que OBarrete continue ao mais alto nível e evolua para algo ainda maior, é a tua vez de poder participar com o pouco que seja. Clica aqui e junta-te à família!

Leave a Reply

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

%d bloggers like this: