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Nota: A crítica foi construída com intenção de não conter spoilers da história de “The Last of Us Part II”. Contudo, pequenos elementos narrativos e de jogabilidade são explorados ao longo do texto. A crítica assume também que o leitor já jogou toda a história do primeiro jogo – “The Last of Us” (2013).

I

Introdução

Uma sequela desnecessária até se pensar no assunto

O primeiro trailer de “The Last of Us 2” foi lançado no final de 2016, tendo o jogo sido lançado quase quatro anos depois, em 2020

É um sentimento natural entre os apreciadores de uma determinada obra de arte (seja um filme, um livro, ou até um jogo) o receio de uma continuação da história. Pesa muito nesse medo a expectativa de que a nova história não consiga igualar a predecessora em termos de qualidade e que esse decréscimo, por conseguinte, tenha repercussões na apreciação da obra original.

É nesse sentido que uma sequela de um jogo como “The Last of Us” seria, à partida, algo a temer. Seria necessário dar continuação a uma obra tão bem recebida, que conseguiu dar uma sensação de conclusão na sua história e que atou a maior parte das suas pontas? Alguma reflexão terá que levar a um “sim” como conclusão possível. Entre as várias razões a favor, a principal é a de que o jogador merece pelo menos um vislumbre das consequências que as decisões tomadas por Joel no último ato de “The Last of Us” tiveram no mundo e que uma sequela seria uma oportunidade perfeita para o fazer.

Esta continuação, materializada pelo lançamento de “The Last of Us Part II”, revela-se, portanto, se não necessária, pelo menos pertinente. Algo inteligente por parte da Naughty Dog foi colocar “Part II” no título da sequela, algo que alude à lógica e pertinência da continuação da história (um pouco ao jeito do que David Lynch fez com “Twin Peaks” em 2017, dividindo a história em “partes” em vez de “episódios” para dar a ideia de um todo).

II

Apreciações à narrativa

Como abalar anos de culto em poucas horas

Embora o jogo seja uma continuação quase direta da história original, introduz muitos novos elementos narrativos

Depois de um jogo como o primeiro “The Last of Us”, seria algo esperado (e diriam muitos, até recomendado) que uma eventual continuação da história apenas se desenvolvesse em cima do que já havia sido feito, algo que não pusesse em causa acontecimentos do primeiro jogo. No fundo, uma sequela mais conservadora e focada em liquidar o apreço da legião de fãs construída. Para o bem ou para o mal, “The Last of Us Part II” contrariou essas potenciais previsões e estabelece-se como uma das sequelas mais ousadas jamais criadas no mundo dos videojogos. Independentemente de o resultado final poder ser tido como negativo, é de realçar a coragem para querer abalar as expectativas dos jogadores.

Certas partes da narrativa incluem ações tomadas por algumas personagens que poderão ser inicialmente incompreendidas e que só serão completamente justificadas posteriormente, fruto de uma multiplicidade de pontos de vista (algo ausente no primeiro jogo) e de uma boa quantidade de flashbacks. Quaisquer apreensões que existam relativamente à plausibilidade de certas decisões são plenamente justificadas pelo final da história, dificilmente fica algo de negativo para contar relativamente às motivações das personagens, algo que só acontece quando a produção conta com uma equipa coesa e argumentistas de classe mundial.

Algo que capta a atenção durante o jogo é uma tentativa bem conseguida de humanizar ao máximo todas as personagens da história. Seja amigo ou inimigo (e incluindo toda a zona cinzenta entre estes dois estatutos), as personagens não são tratadas pela narrativa como meios para fins ou como meros elementos de jogabilidade. Interessantes detalhes incluem os inimigos a gritar pelo nome de um parceiro que é abatido ou a terem conversa fiada quando estão mais distraídos. Apesar de ser um pequeno detalhe, provoca uma sensação intencional no jogador, a de que está a tirar a vida a seres humanos, algo que não é suposto ser divertido, como outros jogos por vezes deixam passar a ideia.

Muita da arte desta sequela é a de conseguir gerir a colocação dos flashbacks entre capítulos. É uma tarefa conseguida com sucesso, pois não só nunca se sente que a analepse efetuada esteja a mais, mas, inclusive, consegue dar quase sempre uma camada extra de significado aos acontecimentos do presente.

“The Last of Us Part II” está também cheio de pormenores narrativos que individualmente significam pouco, mas quando colocados em perspetiva e observados como parte de um todo mostram o porquê de mais uma vez ter obtido um sucesso crítico quase unânime. Embora, por outro lado, as reações do público serem extremamente polarizantes, é algo que acontece quando há a vontade de abalar crenças e expectativas e de não jogar pelo seguro.

III

Apreciações à jogabilidade

Em equipa que ganha não se deve mexer, mas pode melhorar-se

As novas adições de jogabilidade acrescentam dinâmica e ainda mais escolhas durante o combate

Se, por um lado, as opções narrativas primaram pelo arrojo, já na jogabilidade foi jogada uma mão mais segura. Não quer isto dizer que a jogabilidade se manteve inalterada, mas sim que todas as novas adições usaram o primeiro jogo como base.

Excelentes adições como a possibilidade de rastejar, saltar ou evitar ataques corpo a corpo colocam uma dose extra de desafio em cada nível de combate e permitem abordar de inúmeras formas os encontros, ainda mais do que no primeiro jogo, seja agressivamente ou furtivamente. Também o “modo de escuta” não é tão poderoso como anteriormente, algo que força o jogador a estar ainda mais atento ao seu redor. Outras novidades incluem novas armas e o potencial de criar silenciadores improvisados.

Aproveitando o hardware mais poderoso da PlayStation 4, as áreas exploráveis no jogo são colossais em tamanho e detalhe, quando se tem em conta que não é um jogo em mundo aberto. Dizer que o espaço explorável aumentou em 10 vezes em relação ao jogo anterior não será nenhum exagero e será algo que por vezes pode até dar algum desespero aos jogadores mais colecionistas, dada a grande quantidade de espaço que se pode cobrir. Ainda assim este aumento de escala só pode ser considerado positivo, pois a exploração é opcional (embora quem a faça será recompensado com mais recursos e colecionáveis), além de ajudar a colocar o jogador dentro do mundo jogo, baseado em grandes cidades completamente desertas.

Uma das mais agradáveis adições a “The Last of Us Part II” foi a inclusão de uma vertente de enigmas relacionada com a descoberta de códigos de cofres que contêm recursos importantes. Algo em que o jogo predecessor perdia (em comparação com os jogos “Uncharted“, por exemplo) eram os puzzles algo redutores, como movimentações de escadas ou plataformas. Com a adição de códigos aos cofres, que têm que ser inferidos ao analisar o ambiente em redor ou os documentos encontrados, colocam a componente de puzzle num nível muito interessante.

Algo em que “The Last of Us Part II” foi ainda mais conservador foi na diversidade de infetados, algo que é compensado com uma grande melhoria de caracterização destes inimigos. Não só os já conhecidos runners, stalkers e clickers estão com um design visual e sonoro bastante melhorado como o seu comportamento é ainda mais diferenciado, algo que adiciona ainda mais a necessidade de ter em conta o tipo de infetado quando se aborda o combate.

IV

Pontos negativos

As críticas possíveis

Com praticamente todos os elementos do jogo pensados ao pormenor, pouco fica a dizer de negativo

O sonho de qualquer crítico é o de chegar ao parágrafo ou secção em que refere pontos negativos da obra presentemente em apreciação analítica e não conseguir extrair nem uma crítica negativa. Usualmente esta sensação traz consigo alguma desconfiança que pode deixar o avaliador a pensar se a sua apreciação subjetiva não estará a ofuscar defeitos que uma análise objetiva consegue sempre identificar, não fosse a palavra “perfeição” tão raramente usada quando o assunto é arte.

Admitindo então que nenhuma obra é perfeita, porque nenhum ser humano o é, não deixa de haver em “The Last of Us Part II” alguns pequenos aspetos que podiam ser melhorados, pontos negativos que não passam de detalhes e que só se incluem no capítulo de críticas por não haver mais nada de negativo a dizer.

Aquele detalhe que salta mais à vista, principalmente por ir contra algo que o jogo tenta impor como ideia, está relacionado com a variabilidade de modelos de cara e corpo dos inimigos. É certo que é algo que muito complicado de contornar (e que muitos jogos nem se preocupam em fazer), mas pedia-se um esforço adicional num jogo que investe fortemente na humanização de todas as personagens. O facto de haver vários inimigos repetidos com fisionomia e face repetidas, não sendo uma falha grave, torna essa humanização menos eficiente.

Para além desse ponto, outro desmancha-prazeres está relacionado com alguma incapacidade da equipa criativa em conseguir arranjar novos tipos de infetados, para adicionar variedade ao jogo. Para além dos tipos de infetados herdados do primeiro jogo, são adicionados apenas dois tipos novos de infetados, um deles, porventura, demasiado semelhante a outro dos já existentes. O segundo tipo, que por razões de spoilers não será explorado neste texto, apenas aparece uma vez, dando uma sensação de que “soube a pouco”.

Uma última crítica, que só pode ser considerada “falha” por fãs do primeiro jogo que não tenham em conta que muitos outros jogadores não terão uma skill equivalente, relaciona-se com algum eventual excesso de recursos existentes nas dificuldades mais baixas, que remove parte da essência do jogo, a de que “todas as balas contam”.

V

Conclusão

Veredito: Obra-Prima

Embora “The Last of Us Part II” seja um dos mais recentes exclusivos da PS4, já se tornou um dos mais marcantes

Com uma história que inclui mais de 25 horas de jogo (e que pode ultrapassar as 30 horas, dependendo do espírito de explorador do jogador), “The Last of Us Part II” é um desafio que requer investimento emocional (além de tempo) por parte do jogador. É um jogo suficientemente grande para que este último passe por diversos estágios emocionais, sem que a sua alteração se sinta demasiado repentina. Além disso, muitos dos momentos mais parados servem como pausas dramáticas, dando algum espaço ao jogador para respirar e para refletir nos acontecimentos.

Algo que o jogo parece pedir para rejeitar são comparações para com o seu predecessor. Por ser proposto como uma mera continuação da história e não como algo mais distinto, a “Parte II” tem a liberdade necessária para ser tal como “The Last of Us” um jogo perfeito, mas à sua maneira. No fim de contas, sobram poucas palavras para descrever “The Last of Us Part II” que não sejam as de uma obra-prima de storytelling e de gaming.

Luís Ferreira

Rating: 4 out of 4.

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One thought on “Ensaio: “The Last of Us Part II” – Um outro tipo de perfeição

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