Juliana começara a escrever a sua crónica para o jornal de bairro, o mesmo onde Gregório assinava uma coluna comportamental. Aos poucos, Juliana foi se enturmando no lugar, fazia questão de distribuir ela mesma alguns exemplares assim como alguns folhetos que sempre levava consigo. E causas não faltavam: a necessidade de um albergue canino em Venda Nova; campanha para castração de cães de ruas; sugestão para que investigassem o Jardim Zoológico da capital devido a maus tratos (davam poucas bananas para o gorila Kong); rifas para comprar ração e mais uma série de solicitações. Em um desses momentos, estava ela no portão do condomínio de Brigitte; fora indicada por uma conhecida a solicitar algum tipo de auxílio e envolvimento. Depois de muita burocracia para entrar, tendo que deixar o RG e CPF na portaria, entrou e foi encaminhada ao prédio da madame. O porteiro acompanhou-a até o elevador, indicou o 502 e sentiu que a moça fedia a cão de rua. Brigitte, a própria, já a esperava na porta. Fê-la entrar. Indicou-lhe um confortável sofá e sentiu também o fedor canino.
— A que devo o prazer de sua visita?
— Bem, meu nome é Juliana. Como já expus lá na portaria. Há dias venho tentando falar com a senhora.
— Pois não…
— Escrevo agora para o jornal que roda aqui no condomínio – abriu a mochila e retirou de lá um exemplar, apresentando-o a Brigitte – escrevo sobre a causa animal.
— Ah, sim. Recebo o jornal. No que posso ser útil?
— Então, estou escrevendo esses artigos e intento fazer algo de útil além da própria escrita. Estou numa campanha de arrecadação de fundos e além das rifas várias que ofereço, pensei em algo maior. Uma espécie de madrinha ou padrinho para bancarmos um projeto que irá salvar a vida dos cães de rua.
— Os cachorros ficam nas ruas? Eu não os vejo.
— Com todo o respeito, senhora Brigitte…
— Dispenso o senhora, me faz parecer velha…
— Tá. Com todo o respeito, Brigitte, esse condomínio da senhora parece a Escandinávia. E o seu apartamento parece a Suécia.
— Não entendi…
— Desculpe-me, irei simplificar. Reina a riqueza por aqui. Tudo é muito diferente do mundo lá fora.
— As coisas estão tão ruins assim? – a pergunta não era debochada, era sincera.
— De mal a pior. Tá bem, não me preocupo com gente, me preocupo mais é com bicho. Por que o cachorro é irracional, ao contrário de mães faveladas que colocam filhos e mais filhos no mundo sem a capacidade de sustentá-los.
— Que horror!
— Que horror mesmo! Mas, trocando em miúdos, vou direto ao ponto: como já me conhece dos artigos, pensei em pedir o seu amadrinhamento a uma causa que irá sacudir Belo Horizonte.
— Como assim?
— Preciso de uma quantia – abriu novamente a mochila, sacou uma caderneta, pegou uma caneta, rabiscou o valor e ofereceu à Brigitte.
— Nossa!
— Isso é para a construção de um albergue canino no bairro Planalto. E também um programa de castração no lugar. E ração e remédios e tudo a que os cachorros têm direito.
— Mas eu não moro no Planalto.
— Sim, sei disso. Mas o que interessa é o seu voluntariado. E claro, poderei anunciar o seu nome como benfeitora e doadora generosa da nossa campanha. Do mesmo jeito que eu sou voluntária e abnegada a essa causa doando o meu tempo, a senhora será abnegada a ponto de doar essa quantia. Nada no meu nome, mas em nome da ONG a que represento.
— Não sei não. Minhas finanças não andam bem.
— Pense com carinho.
— Sabe, voltei de Paris a pouco. Gastei muito por lá. Fui roubada, tive problemas com o meu cartão de crédito. Não que o valor seja muito, mas tenho que ver…
— Veja, veja sim. E me retorne. Os bichos agradecem.
— Tá, vou pensar – cerrando um pouco as vistas, rememorou uma data – você não estava no lançamento do livro do Gregório?
— Sim, foi ele inclusive que indicou o meu nome para o editor do jornal aqui.
— Ah, me lembro.
— E a sua filha, como vai?
— Então não soube? – fez cara de surpresa.
— Não.
— Ela caiu da janela do quarto. Uma queda fatal. Acidente.
— Nossa! Que pavor!
— Pavor mesmo. Mas vamos falar de outras coisas – levantou-se praticamente dando a conversa por encerrada.
— Tá bom, acho que vou embora.
— Obrigado pela visita, ah, e, por favor, não comente o lugar onde eu moro. Questão de privacidade mesmo. E tem visto Gregório?
Juliana fez questão de levantar-se, deixou-se encaminhar para a porta e Brigitte a acompanhou até o elevador.
— Não o vejo há um tempo.
— Ah, antes que me esqueça: doando esse valor, o que eu ganho com isso?
— Mídia, muita mídia positiva. Visualize o seu nome estampado nos jornais: Brigitte Barsil madrinha de importante abrigo para cães em Belo Horizonte. Soa bem, viu?
— Tá, vou ver as minhas finanças, mas não prometo nada.
— Ficarei aguardando – entrou no elevador, apertou o botão do térreo e a porta se fechou. Estava esperançosa.
Brigitte ficou pensativa. Nervosa. Inquieta. Chamou aos berros a empregada. Ordenou:
— Quero que elimine esse sofá daqui. Veio uma moça agora que fedia a cachorro, sim, fedia a cachorro…
— Mas, senhora, basta lavar…
— Não, não e não. Fale para o porteiro arrumar alguém para levar esse sofá, agora.
— Dê ele pra mim então.
— E você aceitaria?
— Senhora, talvez o único problema é que ele é tão confortável e grande que não caiba no meu barraco todo. Mas se a senhora insiste, ele é meu.
— Contando que o retire agora daqui. Ó visitinha cara essa que tive. A moça fedia a cachorro.
— Sério?
— Sério! Que horror! E que despesa me deu.
A empregada ligou para o porteiro. Pediu o auxílio para retirar o indesejado móvel e deixou ao lado da portaria. Ligou para o esposo e o comunicou da doação. Não sentia cheiro de cachorro, quando muito o cheiro de estofado novo. O marido, surpreso, ficou de arranjar o carreto. Voltou para o apartamento e ouviu ordens:
— Terei que sair agora para comprar outro sofá. Onde já se viu uma casa sem sofá? Quero que limpe esse lugar e o desinfete, esfregue, quero tudo limpo para a hora em que eu voltar.
— Sim senhora – a muito custo segurava o riso, por mais que já estivesse acostumada com as excentricidades da patroa.
— Não ria, insolente! Apenas esfregue.
— Desculpe-me patroa, não quis ser desrespeitosa.
Brigitte saiu nervosa e ansiosa. Comprar um sofá, sua próxima meta. “Maldita visita que recebi agora!”. Encomendou um Chesterfield de oito mil reais. O dono da loja conseguiu um de pronta entrega e, para aproveitar, adquiriu também um tapete tufting joy pérola, de mil e duzentos reais.
Perto dali, Juliana visitava outros prédios, sendo rechaçada pela maioria que, quando muito, pediam para que ela deixasse os jornais na portaria mesmo. Mas estava feliz. Antevia o patrocínio de Brigitte Barsil e a salvação de mais alguns animais em mais um bairro da cidade.
Gregório estava corrigindo provas e redações em seu apartamento. Ainda martelava em sua cabeça a conversa que tivera com Andreia dias atrás. Abandonar toda a razão. A sua racionalidade conquistada a muito custo. Resignar-se e se entregar a Deus, a uma crença. Com uma vida cada dia mais vazia e solitária, assombrado pelo fantasma de Carla, já não lia trechos de “Assim Falava Zaratustra“. Fugia do contato de Lorena e sabia que, dali a uns dias, com as férias escolares, ficaria no limbo. A menos que encontrasse forças para sair daquela situação.
Sabia estar deprimido. Recusou-se a tomar remédios para acelerar; sua racionalidade era tão acentuada que não admitia isso. Como zumbi, mas aferrado à sua razão, sacrossanta razão, resistiria. Enfadou-se com textos mal escritos, o internetês estava comprometendo o processo de escrita de muitos de seus alunos e Gregório pensou em um artigo para chamar a atenção. Mas percebeu que já não mandara os seus textos há umas três semanas e nem fora cobrado por isso. Com melancolia, desconcentrou-se da correção e chegou à conclusão de que os seus artigos eram uma gota no oceano, os seus vindouros livros duas gotas no oceano, nada mais que isso. Ligou para o editor, preocupado em dar uma justificativa.
— Não ligue, seu Gregório, não ligue. Sei como se dá essas coisas. Inspiração é coisa que vai e vem, e falar nisso…
— Obrigado pela compreensão.
— Então, e por falar nisso, tenho um assunto delicado a tratar contigo. Sabe como são as coisas, né? O não envio de seu artigo ocasionou um espaço vazio, eu tive que buscar algo na Internet e já na outra semana recebi o pedido de um escritor de autoajuda que pediu para escrever. Espero que não leve a mal, mas o coloquei no seu espaço.
— Não, claro que não. Mas poderia ter me avisado, eu compreenderia.
— Ah, seu Gregório! Sabe como é a vida, né? Mas não quero que leve para o lado pessoal. Te respeito muito. Mas o sujeito manda bem. Já leu os jornais que enviei?
Gregório havia acumulado várias correspondências, dentre elas os jornais. Pediu desculpas e disse estar ocupado nos últimos dias. Mas que leria.
— Então leia, Gregório, leia! O sujeito é positivo, alto astral, jovial, fala pérolas que as pessoas querem ouvir, todos estão gostando muito dele. E, se me permite a franqueza, posso ser franco, senhor Gregório?
— Por favor.
— Quando eu recebia comentários de seus textos, eram todos negativos. Falavam que você usava palavras difíceis para se expressar, como a priori, onde já se viu, senhor Gregório, usar a priori?
— Tá. Agradeço a sua sinceridade.
— Ah, outra coisa: agora que já não é mais colunista, quero te pedir a colaboração pagando a sua assinatura. Sabe como é, né, seu Gregório, as coisas não andam fáceis para ninguém. Os selos dos correios subiram muito de preço.
— Tá, pode contar comigo. Mande-me a conta para depósito no meu e-mail e deixa-me te perguntar: e Hamilton?
— Não soube?
— Não.
— Coitado! Endoidou de vez. É sério! Fica agora pelas ruas, como descompensado, com volantes da Loteca e pede opiniões a todo mundo acerca da marcação dos jogos. Isso quando está sóbrio. Quando não, grita, esperneia, só sabe falar dos 14 jogos e isso o está matando. Caso de internação mesmo. Mas o lance do prémio perdido foi a morte para ele. Hamilton ficou lelé da cuca.
— Coitado!
— Coitado mesmo! É esquisito o sujeito parar em um ponto de ónibus, encarar uma senhorinha e perguntar aflito: “Minha senhora, diga-me, por favor, jogo 7, Juventude x Guarani de Campinas. Coluna 1, 2 ou do meio?” É de assustar.
— E desculpe-me te perguntar: o senhor não pode fazer nada?
— Gregório, não sou psiquiatra, sou editor de jornal.
— Mas pensei que fossem amigos.
— Não, amigos amigos, negócios à parte. E sabe de outra maluquice dele? Quando você esclareceu que o prêmio dele seria de 700 mil, lembra-se? Pois bem, o infeliz sai de casa todo arrumado, enche o saco de um corretor qualquer de imobiliária e fecha a compra do apartamento, coisa de uns quinhentos mil, com a papelada. Todos saem felizes e Hamilton fica apenas a fazer a transferência da aquisição e, é claro, não tem o dinheiro. Já fez perder o tempo de uns três corretores, um inclusive jurou que iria dar uma surra nele. Sinto dizer, amigo Gregório, mas o Hamilton é caso perdido. Enlouqueceu de vez o infeliz!
— E como ficou a captação de anúncios para o jornal?
— Então, seu Gregório, agora eu faço tudo: recebo os textos, corrijo, faço a diagramação, ofereço os anúncios, mando para a gráfica, busco na gráfica, etiqueto e posto nos correios. Tudo sozinho.
— Entendo. Mas ajude Hamilton.
— Mas como? Não sou psiquiatra. O coitado precisa é de internação. Ficou doido.
— Entendo. Obrigado pelo tempo em que estive aí.
— Obrigado também! Você tem muitas patranhas na cabeça, mas é um bom sujeito. Só precisa de duas coisas: tentar agradar o povo nos seus escritos e ter Deus no coração. Sem Deus, Gregório, não somos nada.
Gregório agradeceu os conselhos, desligou e ficou a pensar em Hamilton. Coitado! A seguir pegou uma das edições que não havia lido, dirigiu-se à página 4 onde ficava a sua coluna, e com a mesma diagramação e formato, leu o texto de Mathias Ribeiro Batista.
Quando desejamos algo com muita vontade, todo o Universo conspira a favor
Mathias Ribeiro Batista
Oi gente! Escrevo essa segunda coluna fazendo um chamamento a sermos mais positivos e otimistas nesse mundão bom de meu Deus. A força do pensamento positivo é a chave motriz que fará com que possamos alcançar todos os nossos objetivos. Ter a mente positiva é perceber que estamos com o espírito nos Alpes Suíços, pelo menos na percepção de nossa alma, para enfrentarmos a dureza do cotidiano. Pensamento positivo é o que nos faz crescer como seres humanos que somos.
Gregório interrompeu a leitura. Riu. Deu gargalhadas. Depois de muitos dias, sentiu o fio da sua ironia voltar. Pensou em Carla que pelo menos havia se matado antes de ler esse artigo idiota e desconfiou que, se lesse até o final, ele mesmo pularia do prédio onde morava. Depois de ler péssimas redações de seus alunos (algumas se salvavam) e ler aquele lixo escrito por Mathias (“que idade teria esse débil mental?”), recorreu a Nietzsche. Precisava da ajuda do alemão. Como de praxe, abriu ao acaso e leu: “Foge, meu amigo, para a tua soledade! Vejo-te aturdido pelo ruído dos grandes homens e crivado pelos ferrões dos pequenos. Dignamente sabem calar-se contigo os bosques e os penedos. Assemelha-te de novo à tua árvore querida, a árvore de forte ramagem que escuta silenciosa, pendida para o mar. Onde cessa a soledade principia a praça pública, onde principia a praça pública começa também o ruído dos grandes cómicos e o zumbido das moscas venenosas. No mundo as melhores coisas nada valem sem alguém que as represente; o povo chama a esses representantes grandes homens. O mundo compreende mal o que é grande, quer dizer, o que cria; mas tem um sentido para todos os representantes e cómicos das grandes coisas. O mundo gira em torno dos inventores de valores novos; gira invisivelmente; mas em torno do mundo giram o povo e a glória: assim ‘anda o mundo’. O cómico tem espírito, mas pouca consciência do espírito. Crê sempre naquilo pelo qual faz crer mais energicamente – crer em si mesmo. Amanhã tem uma fé nova, e depois de amanhã outra mais nova. Possui sentidos rápidos como o povo e temperaturas variáveis. Derribar: chama a isto demonstrar. Enlouquecer: chama a isto convencer. E o sangue é para ele o melhor de todos os argumentos. Chama mentira e nada a uma verdade que só penetra em ouvidos apurados. Verdadeiramente só crê em deuses que façam muito ruído no mundo. A praça pública está cheia de truões ensurdecedores, e o povo vangloria-se dos seus grandes homens. São para eles os senhores do momento. O momento oprime-os e eles oprimem-te a ti, exigem-te um sim ou um não. Desgraçado! Queres colocar-te entre um pró e um contra? Não invejes esses espíritos opressores e absolutos, ó Amante da verdade! Nunca a verdade pendeu do braço de um espírito absoluto. Torna ao teu asilo, longe dessa gente tumultuosa; só na praça pública assediam uma pessoa com o ‘sim ou não’? As fontes profundas têm que esperar muito para saber o que caiu na sua profundidade. Tudo quanto é grande passa longe da praça pública e da glória. Longe da praça pública e da glória viveram sempre os inventores de valores novos. Foge, meu amigo, para a soledade; vejo-te aqui aguilhoado por moscas venenosas. Foge para onde sopre um vento rijo”.
Gregório estava absorto nessa viagem, quando recebeu um telefonema e atendeu.