Nota: Esta é a segunda e última parte do conto “Os Mortos Contam Histórias”, escrito pelo nosso colaborador Bernardo Freire. Uma obra inédita que tem a sua primeira parte publicada aqui.
(…)
Em casa de Raquel os ânimos exaltavam-se.
– Esplêndido! Agora a tua filha foi embora sabe-se lá para onde! – Disse Bruno, com as mãos na cabeça.
– Ela não disse nada? – Respondeu Yasmin, agora levantada.
– Disse que tinha ido para casa de uma amiga.
– Então, sabes para onde foi.
– Eu sei lá!… Se sair a ti pode perfeitamente estar a mentir. – Acusou o marido.
– Desculpa? Fui eu que menti em relação àquele “jantar de negócios” com os “teus clientes”? – Retorquiu, apontando o indicador à sua cara.
– Mentiste sobre o dinheiro que estavas a fazer com o salão Yasmin!! Dinheiro que estou a tentar recuperar! Os empréstimos não se pagam sozinhos!
– Eu tenho tudo controlado, estou a cobrar mais caro e tudo para compensar temporariamente. Se confiasses mais em mim talvez não chegasses a casa a estas horas!
– Queres falar de confiança? Primeiro acusas-me de coisas que não fiz, e depois vens-me falar de confiança…
O enegrecer das nuvens era proporcional às emoções do casal. Estavam consumidos pelo ódio, descrença e neuroticismo. As bases da relação tinham desabado, não havia créditos para dar um ao outro e a intimidade era um conceito do passado. Desta vez não havia sinal de abrandamento, tanto o discurso como as ações escalaram.
– Não é preciso muito para te topar, és um traste!
– Sou o quê? És muito engraçadinha… Sempre dei tudo por esta casa e o que recebo em troca? Ofensas. Culpas. Tudo o que tenho direito, não é? Pois acabou. Quero-te fora desta casa! Eu e a Raquel não precisamos de ti!
– Ora aí está algo que nunca vai acontecer! – Respondeu Yasmin, a rir-se.
– Pensas que estou a brincar? – Rugiu Bruno.
As palavras já não chegavam para expressar o desprezo. Bruno pegou-lhe por um braço e tentou arrastá-la casa fora. Resistente, a mulher contrariou o movimento, escapando-lhe ao pé da porta.
– Vais ser preso! Vou já chamar a polícia e vais parar à prisão! – Exclamou, apavorada.
Encurralada, os seus olhos mingaram ao constatar o reflexo da faca de cozinha na mão de Bruno. A situação parecia irreversível e esta não pretendia ceder às provocações. Ao recuar do braço erguido de Bruno, Yasmin tropeça na escada que dá acesso ao primeiro andar, caindo. A raiva que dele se apoderava fê-lo cometer o pior ato da sua vida. Perfurara-lhe a traqueia, num golpe certeiro e irremediável. Ao ver o seu sufoco ensanguentado, o desespero e arrependimento instantâneo fizeram-no perceber de imediato o erro que cometera.
Em estado de choque, cambaleou escadas acima e dirigiu-se até ao quarto que partilhara com Yasmin, para pegar na sua arma. O suor na mão esquerda transferiu-se para a munição com a qual carregara a arma. Ao olhar para ela, sabia o que tinha de fazer. Desceu as escadas e perto do corpo da sua amada apontou a arma ao céu da boca e pôs fim ao seu ciclo de escárnio e miséria.
Capítulo III
Os Mortos Contam Histórias
Até Cláudia, que normalmente não se deixava afetar muito, começava a sentir-se desmoralizada. Porém, pela amiga, manteve uma figura resiliente.
– Quando voltares a casa vais ver que já está tudo mais calmo. De qualquer modo, estás quase a fazer 18 anos, é altura de pensares em ti, no que queres e para onde queres que o futuro te leve. Deixa que isso te anime!
– Sabes, às vezes penso em ti e nos teus pais e gostava que a minha família fosse também assim, alegre e unida. Acontece o mesmo quando estou a ler os meus romances, não estou a falar de contos de fadas, mas sim daqueles que contam histórias de amor, dedicação e estima um pelo outro. Aqueles que ensinam a valorizar as pequenas coisas da vida. – Desabafou Raquel, incapaz de esconder o desalento nos seus olhos castanhos.
– Os meus pais podem não discutir tanto como os teus, mas também têm as suas desavenças. Olha, por exemplo. – Continuou Cláudia. – Na semana passada a minha mãe foi sair com amigos e o meu pai estava em baixo por causa do meu avô, que está com problemas respiratórios graves. Mesmo assim, a minha mãe foi sair. Na altura achei muito estranha a atitude dela mas mais tarde ela falou com o meu pai e chegou à conclusão que tinha errado. Ele desculpou-a e pouco tempo depois as coisas voltaram ao normal. É importante não haver rancor numa relação. – Suspirou a amiga.
– Porquê que os meus pais não tiram o mesmo curso que os teus? – Brincou Raquel, ressuscitando algum do seu vasto sentido de humor.
– Assim gosto mais amiga, assim gosto mais. Pode estar a desabar o mundo que encontras sempre uma forma de rir e fazer rir. É uma característica valiosa, espero puder contar com ela quando for eu a precisar!
– Claro que sim! Obrigada por me deixares passar por cá e desabafar um pouco. Estava prestes a rebentar dentro daquela casa. Espero que já se tenham acalmado. Vou indo amiga.
– Tenho a certeza que sim, eu acompanho-te até à porta. Manda mensagem quando chegares para saber como está tudo e qualquer coisa que precises, já sabes, passa por cá!
As amigas despediram-se com um abraço forte. Era exatamente daquele quentinho que precisava. Agora mais aliviada, caminhava em direção a casa, esperançosa de que tudo estaria um pouco melhor. Esses pensamentos estendiam-se à forma como iria aproveitar o dia seguinte. Tinha de ir à escola, mas pelo menos tinha Português, que adorava. Tinha de fazer os trabalhos de casa de Biologia, mas teria a oportunidade de ler logo a seguir.
A expetativa deste paradigma fazia-lhe esboçar um sorriso. Ignorante de que seria sol de pouca dura. Chegou à porta e girou a chave de casa com uma mão enquanto fazia o mesmo movimento com a mão disponível na maçaneta. O que vê mal abre a porta deixa-a petrificada e de olhos esbugalhados. Tudo o que pensara anteriormente evaporara. Qualquer réstia de sentido deixara de existir. Perante as carcaças dos seus pais, Raquel não entrou em casa. Voltou-se para a rua e caminhou até às escadas, poucos metros em frente, onde se sentou. Perdida no vácuo do seu consciente, as sinapses falhavam, mas conseguiu conceber a pergunta: “Porquê?“.
Finalmente, começou a chover torrencialmente. Para Raquel, que permanecia curvada em posição fetal na escada, as gotas não estavam a ser processadas. Os músculos pesavam mais do que o habitual. O cérebro, ainda meio dormente, inundou-se de questões mais penetrantes que as gotículas de água na roupa. “Terei sido eu a causa?” “Deveria ter ficado em casa?” “Porque é que eu saí de casa?” “Poderia ter evitado isto?“. Não lhe ocorriam respostas.
À medida que tentava fazer sentido da situação, a jovem ponderava chamar as autoridades. Ainda tremia, estava destroçada. A adolescência não lhe tinha sorrido apesar de nunca ter requerido muito mais do que o inestimável conforto de um lar. Somente palavras gentis, um clima ameno e preocupação pelos seus. “Não podia ser assim tão difícil” – Pensou para o seu interior fragilizado.
Antes de chamar o 112, voltou-se e caminhou até às escadas. Nunca esteve perante nada tão horrível. A ausência de brilho nos seus olhos seria algo que levaria para toda a vida. Naquele momento turvo, um relâmpago de esperança fê-la crer que os mortos contam histórias e iria fazer tudo para que, chegada a hora final, a sua não fosse igual à dos seus pais.
FIM