Nota: Escrito por Bernardo Freire, esta história está dividida em duas partes. Uma obra inédita vinda directamente do arquivo do nosso amigo e colaborador.
Capítulo I
Mais do Mesmo
O jantar estava servido e havia poucos eventos que entusiasmavam Raquel como uma refeição de bacalhau com natas. O cheiro reconfortante e a previsão do gosto salgado faziam parte do encanto, mas era a receita especial de Yasmin, sua mãe, que fazia toda a diferença. Mesmo não sendo adepta ávida de culinária, Raquel estava sempre a comentar que em sua casa iria emular a fórmula ingrediente por ingrediente e quantidade por quantidade. Perto da maioridade, a independência era algo que a movia tanto quanto aquele bacalhau com natas.
– Falta muito para o pai chegar? – Questionou Raquel.
– Ele disse que estava muito perto. – Respondeu a mãe.
– Tenho a barriga a dar horas!
Não passara muito tempo, um ruído de um motor familiar alertou o sentido auditivo de Raquel, que informara de imediato a chegada do seu pai, Bruno.
– Espero que venha de bom humor. – Comentou, sem alento.
– Vais ver que sim, filha.
A porta bateu com a brutalidade do costume, um gesto que reprimia o ambiente muito antes de qualquer um abrir a boca. Além disso, a secura da garganta bloqueava a saliva da jovem, impedindo que escorregasse como deve ser. Com fome e de palmas ligeiramente suadas aproximou-se da porta, saudou-o e perguntou-lhe se tinha fome.
– Muita! Como estamos de jantar?
– Está pronto, é bacalhau. – Declarou Yasmin, com indiferença.
– Não havia outra coisa? Daqui a pouco o meu estômago transforma-se num oceano… – Respondeu com repúdio.
– Podias ter ido jantar fora, escusávamos de ter esperado por ti. – Voltou a entoar Yasmin, com o mesmo tom de voz.
– Olha-me esta… Não me digas que estás chateada outra vez!
Os três sentaram-se à mesa, relutantes. Minutos depois, apenas o som do televisor tentava aconchegar o ambiente, enquanto a frase “outra vez não” fazia um eco desesperado na mente de Raquel. Não era só a tristeza da rotina que a incomodara, mas principalmente a insistência e incapacidade de comunicação dos pais que faziam com que os mesmos assuntos viessem interminavelmente à baila.
Para ela, tal como para Einstein, fazer a mesma coisa e esperar resultados diferentes era sinónimo de insanidade. Eternamente otimista, procurou quebrar o gelo.

– O bacalhau está delicioso!
– A mesma merda de sempre, não sei onde é que a tua mãe vai aprender a fazer estas comidas, com a minha mãe não foi de certeza. – retorquiu Bruno, carregado de rancor.
– A tua filha está a adorar, talvez devesses pedir a receita à tua mãe e tentar chegar a casa mais cedo para nos deliciares.
– Atrasei-me no trabalho, nunca te aconteceu? Há quem não tenha horário para sair. – A ironia era incontestável.
Raquel arrependeu-se de imediato por ter falado. Tinha redirecionado o foco para comer o mais rapidamente possível e escapar dali para o seu quarto, no primeiro andar da casa. A sua introversão acolhia-se naquelas quatro paredes, muito embora os gritos e agressões permeassem com relativa facilidade, adorava ler romances e imaginar um futuro colorido, sem a amargura do presente, que pesava cada vez mais.
– Eu sei bem o que fazes com esse horário fléxivel: Metade é para os amigos, um quarto é para fingires que trabalhas e o outro quarto é para não fazeres nada. É impressionante como não somos nada para ti! – Disse Yasmin, elevando o tom em progressão.
– Que versão ignorante… Aí está o teu problema, sempre ingrata, sempre a reclamar. O psicólogo está disponível para ouvir as tuas queixas. Agora deixa-me comer em paz.
– Eu não preciso de psicólogo nenhum, preciso de um marido, sabes o que isso é? – As palavras saíram-lhe com engasgo.
– Está aqui presente, para quem souber apreciar. Não é filha? Gostas do pai?
Os seus punhos cerraram, tinha comido o suficiente. Repentinamente, girou em torno da cadeira e dirigiu-se para o seu quarto, cabisbaixa. A primeira dentada tinha sido a única que aproveitara com gosto. Reacionária, decidiu ligar à sua amiga Cláudia, que morava nas redondezas, e perguntou se podia passar lá por casa para desabafar um pouco. Não conseguia pensar com tino. A discussão não cessava.
– Vês o que fizeste? Aí tens a resposta. Nunca estás em casa e quando estás é para isto. – Acusou Yasmin, cheia de frustração.
– Quantas vezes é preciso dizer que as vendas não aparecem sozinhas! É preciso ir atrás delas, fazer por merecê-las!
– E de mim? Já não é preciso ir atrás! E a tua filha? Não vale o esforço?
– Se tudo fosse tão fácil como cortar cabelo Yasmin!…
A porta fechou-se com mais brutalidade do que da última vez. Bruno correu até ela e viu Raquel a correr estrada fora. Ao gritar “Onde vais filha?” obteve a resposta “A casa de uma amiga!“. Não suportaria nem mais um minuto a toxicidade daquele clima, estava perto do ponto de rutura. Sabia que escapar era a solução, mesmo que temporária, para se conseguir acalmar.
Capítulo II
O Fim da Ruindade
O caminho foi curto mas cinzento. À medida que ameaçava chover, também os olhos de Raquel começavam a lacrimejar. Mal chegou a casa de Cláudia não conseguiu deixar de notar o contraste. As paredes estavam pintadas com a luz quente da lareira, a árvore de natal sorria com brilhantes e tocava Frank Sinatra na aparelhagem. Até o gato estava confortável na sua cama, que elegera por sua única e exclusiva vontade.
Os pais de Cláudia rapidamente aprontaram-se até à porta para receber a amiga, que durante instantes conseguiu disfarçar a angustia que sentia por todo o corpo. Cláudia pegou-lhe na mão e levou-a até ao seu quarto onde podiam falar com sossego.
– Então amiga, estão de novo a discutir? – Perguntou Cláudia, com ternura.
– Sim, novamente a discutir, sempre a discutir! – Choramingou Raquel.
– Estão a discutir sobre o quê? Qual é o problema? – Averiguou.
– Não é um problema amiga, são muitos problemas. Eles não se entendem, não se valorizam. A minha mãe está sempre a queixar-se que o meu pai está sempre fora de casa, não ajuda o suficiente, não está presente. E o meu pai diz que nunca é bem tratado e que não merece a forma como lhe falam. Às vezes trocam insultos, outras vezes batem um no outro e eu estou farta, estou cansada.
Assim que terminou, ambas sentaram-se na cama e olharam para baixo. Raquel recuperou o fôlego e continuou o desafogo, já em choro.
– Serei eu o problema? Será que eles eram felizes antes de mim? Não me lembro da última vez que os vi verdadeiramente felizes, é sempre este carrossel de discussões com intervalos pelo meio para o descanso.
– Não sejas tontinha. – Respondeu Cláudia – Não tens culpa nenhuma dos teus pais não se entenderem. Mas vais ver que as coisas vão melhorar, pode ser apenas uma fase mais difícil, problemas financeiros, no trabalho ou assim.
A tentativa de auxílio não estava a dar muitos frutos. Entretanto, Raquel pediu um lenço para limpar a cara, que estava com contornos avermelhados. O lenço foi entregue e com ele veio algum alívio. O suficiente para continuar a conversa com mais calma.
– A minha mãe está com alguma dificuldade em arranjar clientes para o salão e o meu pai tem feito horas extra para tentar aproveitar as comissões, só que o problema está na raiz e não na árvore. Mesmo que estivesse tudo perfeito eles iam arranjar algum motivo para discutir, nem que fosse a irritação da chuva, percebes?
Não percam a segunda parte da história, porque nós também não!