Em 2016 o cineasta chileno Pablo Larraín lançou “Jackie” e “Neruda” para o grande ecrã. Duas bestas distintas com características bastante próprias, como costumam ser os filmes do realizador. Passados 3 anos, o Festival Internacional de Cinema de Veneza foi o palco escolhido para a estreia de “Ema”, um estudo de personagem com implicações muito maiores que ela própria.
A personagem título é interpretada pela magnífica Mariana Di Girolamo, uma bela dançarina de reggaeton que vive em Valparaíso com o seu namorado e coreógrafo Gastón (Gael García Bernal). A relação é de amor-ódio. Tanto precisam um do outro como subitamente colocam uma muralha de gelo entre ambos. A ancorar o casal está Polo (Cristián Suárez), um rapaz de 7 anos que foi adotado. No entanto, as suas características psicóticas fazem-no queimar a cara da tia enquanto brincava com fogo, assim como congelar um gato até à morte. Depois do incidente abrasivo, Polo é devolvido aos serviços sociais. Apesar das contra-indicações, Ema quer o seu menino de volta e desenvolve um plano para atingir esse fim.

Despreocupado com a entrega de um enredo denso, Larraín está muito mais interessado em evocar uma atmosfera hipnótica e em expressar uma protagonista volátil, quer em termos de personalidade como sexualidade. A sequência de dança inicial, pintada com dezenas de corpos humanos e notas de cores vibrantes é intercalada com a única exposição necessária para compreendermos as bases da narrativa. Dos quinze minutos em diante, o conteúdo desafia as convenções daquilo que entendemos ser a estrutura basilar da sociedade: a família. O que é que define uma família? Quem deve ter algo a dizer sobre o assunto? O que é que faz de alguém uma boa mãe ou um bom pai no século XXI?
Estas e outras questões penetram o drama de Ema do princípio ao fim. Perto dos créditos finais, chega a recordar o marcante “A Vida Que Mereces” (2020), na medida em que acompanhamos a jornada instável de uma protagonista com uma missão cega, surda e muda em função do seu propósito narcisista. O fogo assíduo entre as cenas personifica aquilo que faz com quem a rodeia – destruir para reconstruir. É um percurso manchado por traições e manipulações. Enrugado por prazeres carnais e sentimentos dúbios. Onde tudo e todos são personagens secundários e moldáveis aos encantos da dançarina.
A suportar o conteúdo está uma sensibilidade estética e técnica aprimorada. A fotografia de Sergio Armstrong assombra o cérebro tempos depois da visualização. Quer pelas luzes néon utilizadas, quer pelo enquadramento das personagens na tela. Além dos aspetos visuais, a composição musical de Nicolas Jaar oferece um suporte ao mistério, uma aura que estimula o envolvimento nas cenas. Através de sintetizadores, ritmos pop e reggaeton, a audição volta a ser um sentido determinante nos filmes do cineasta.

O impacto da história é, porém, mitigado pelo facto de não sentirmos o peso da ausência de Polo entre o casal, uma vez que nunca os vemos a interagir antes do início deste drama musical. É como se uma prequela fosse recomendável para entendermos na totalidade a dimensão real do que está em risco. Funciona em pleno no papel, mas retira algum mérito quando a história é transposta para o grande ecrã.
Tudo isto não impede “Ema” de ser um filme brilhante, mesmo quando o assunto se trata de interpretações. Mariana Di Girolamo, acompanhada de um papel secundário temperamental do recorrente Gael García Bernal, é completamente reveladora com a sua espontaneidade e tranquilidade física diante da câmara. Quem passar pela experiência assume que a jovem é bailarina, mas na verdade a atriz “meramente” se preparou para encarnar a personagem. Esta, por muitos defeitos que tenha, consegue extrapolar uma réstia de humanidade.
É, em suma, mais um grande sucesso de Pablo Larraín, que em conjunto com Sebastián Lelio, está cada vez mais a destacar-se como um dos melhores autores do cinema chileno.
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