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“Madame Bovary” (Nova Cultural, 414 p.) é um romance clássico de Gustave Flaubert (1821-1880). Publicado em 1856, levou cinco anos para a sua conclusão, e causou enorme polémica a ponto de o autor ser chamado aos tribunais, uma vez que atentava contra a moral e os bons costumes. Flaubert conseguiu safar-se bem desta, e como sempre ocorre naquelas coisas que são proibidas, angariam para si bastante publicidade e o livro foi um estrondoso sucesso. Mas o que de imoral existe no livro para tal alarde? Lendo-o e, claro, extemporaneamente, não percebi nada demais.

Vamos à trama básica: um médico de província, Charles, encanta-se por uma moça do povoado, Ema Rouault, e após enviuvar, faz o acerto com o pai da moça para contrair matrimónio e assim forma-se o núcleo. Charles casara-se com uma rica viúva em busca do dote, era fraco de espírito e nem de longe alcançaria a excelência do pai que era um famoso médico. Tanto é que nem médico consegue ser, sendo um oficial da Medicina, mas por deferência, na província os moradores o tratavam por Doutor. Ema é uma pacata dona de casa e que mantêm o hábito de ler romances para se instruir.

É salutar lembrarmos que a leitura naquela época era o único modo de distração dentro da residência (imaginem um mundo sem Internet, TV, redes sociais, Netflix) e o que para muitos pode parecer um inferno, quem sabe não seria o contrário? Pois bem, Ema vai se imaginando no papel das heroínas e, ao mesmo tempo em que voa pelas páginas dos romances, vê-se dentro de um casamento convencional e chato, com um esforçado marido médico sem muitas pretensões. Percebe a vida modesta e vai se endividando com objetos para si e para a sua casa. Meia coquete, não demora muito para transpor o mundo da imaginação e angariar amantes. Ela é bem pueril.

Gustave Flaubert

Envolve-se com o tabelião Léon, mas tudo não passa de uma paixoneta, ainda mais que o rapaz irá para a capital concluir os seus estudos. Cito um trecho para percebermos o estado de espírito fútil da nossa heroína:

Desde então a lembrança de Léon transformou-se como no centro de convergência da sua tristeza, crepitando ali mais viva que a fogueira dos viajantes abandonados na neve, numa estepe da Rússia; Ema se precipitava para essa fogueira, achegava-se a ela, revolvia delicadamente esse lume quase a apagar-se, procurava ao redor tudo o que pudesse avivá-la ainda mais; e tanto as reminiscências mais remotas como os acontecimentos mais recentes, o que sentia e o que imaginava, seus desejos de voluptuosidade que se dispersavam, seus planos de ventura que estalavam, como ramos secos, sua virtude estéril; suas esperanças perdidas, os cuidados domésticos, tudo ela reunia, tudo tomava e empregava para reavivar a sua tristeza“.

Mas é com Rodolfo que ela irá consumar o adultério. Solteirão convicto, bon vivant e galanteador, residente num lindo castelo, será aquele apenas interessado no sexo e em aproveitar-se da situação. Endivida-se dando presentes ao amante, que acha tudo muito cafona mas dissimula bem o seu sarcasmo. O credor da protagonista é o senhor L’Heureux, uma espécie de antiquário que tem sempre objetos de valor e novidades.

Aqui Flaubert escancara bem os reais interesses do comerciante: ao propor créditos, é bonzinho e solícito ao extremo no início, mas, com o passar do tempo e com as letras não quitadas, torna-se ameaçador e até agressivo. Ema está perdidamente apaixonada e intenta fugir com o seu grande amor, mas, a um dia do combinado, recebe uma carta de Rodolfo que pensa melhor e entende ser uma roubada essa empreitada. Ema literalmente fica para morrer e já vai percebendo que o sentido da sua existência é vazio e que apenas a morte a confortaria.

Ilustração da obra “Madame Bovary”

Como apêndice disso tudo, Ema tem uma criança com o esposo e a chegada de Berta só a entedia mais. Como esperava um varão, com o seu incorrigível tédio contrata uma ama de leite para cuidar da pequerrucha. Faz com que esta resida na casa da criada, um anexo à casa principal. Não demonstra carinho pela criança, a ponto de a repelir com um empurrão que a faz cair e machucar o rosto, obviamente, a pobre pequena será amorosamente cuidada pelo pai.

Ema, enfastiada no seu tédio contumaz, abandonada pelo grande amor da sua vida, reencontra Léon, mas nada será mais como antigamente. Só lhe resta uma atitude drástica que não irei contar para não estragar a surpresa daqueles que ainda não se propuseram a ler esta obra genial. E também o infortúnio do médico que vê os objetos da sua casa todos leiloados é de cortar o coração.

Perguntado certa feita porque não havia me casado ainda, brinquei e saí-me com esta: “É que eu li o antídoto chamado “Madame Bovary””. O vencedor do Nobel peruano Mario Vargas Llosa escreveu, em forma de homenagem, “A Orgia Perpétua” e afirma que “Madame Bovary” é o grande livro da sua vida. Baudelaire foi outro que elogiou bastante o romance à época.

Misto de Romantismo e Realismo, Flaubert não gostava da segunda pecha, mas elementos presentes apontam para essa caracterização. Um livro clássico é aquele que mantém a sua atualidade mesmo após um longo período e indico apenas que não se personifiquem nas vidas dos seus personagens, pois assim sendo, e tão iludidas quanto Ema Bovary, poderão dar asas à imaginação e darem com os burros n’água. Um deleite ler um livro tão marcante. De Flaubert, já tratei aqui de “A Educação Sentimental“, outro clássico.

Marcelo Pereira Rodrigues

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