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Porque A Arte Somos Nós

A reputação da cineasta norte-americana Kelly Reichardt precede-a por razões sólidas. Ao longo dos anos formou um corpo de trabalho notável, focado em tom e atmosfera, com personagens à deriva da sociedade e sem grande luz ao fundo do túnel. De certo modo, “First Cow” encaixa que nem uma luva na lógica fílmica do cinema independente e vigorante da cineasta. Um drama de época sobre a capacidade de subsistir em condições exigentes mas, sobretudo, uma representação sentida do começo de uma amizade.

Baseado no romance do escritor Jonathan Raymond, “The Half-Life“, o argumento foi assinado por Reichardt e pelo próprio escritor, que é um parceiro regular dos filmes da autora. O pano de fundo é Oregon, 1820, e a história começa por introduzir Cookie Figowitz (John Magaro), um cozinheiro dotado que na sua busca pela sobrevivência tropeça num grupo de caçadores de peles. Ao chegar a uma aldeia, estabelece uma afeição com King-Lu (Orion Lee), com o qual começa a ganhar lucros ilegais. Isto porque assim que a primeira vaca da região chega à quinta de um comerciante (Toby Jones), eles começam a roubar-lhe o leite para cozinhar bolinhos para os aldeões.

Cookie Figowitz e King-Lu

Tal como no thrillerNight Moves” (2013), os protagonistas não olham a meios para atingir os fins. Quebrar a lei quer para aproveitamento próprio como para o bem comum parece-lhes apropriado. Principalmente em terras sem identidade, onde os recursos são escassos e estão concentrados nas elites mercantis. Por outro lado, a relação de companheirismo sustém o núcleo da narrativa, da mesma forma que “Old Joy” (2006) pretendia captar a atenção através da relação dissonante entre as suas personagens. Aqui a relação é toda menos desconectada, na medida em que, para além do cuidado no trato, é possível observar pequenos gestos como Cookie a varrer a cabana de King-Lu enquanto este tenta atear uma fogueira.

Além destes detalhes mundanos já expectáveis do cinema de Reichardt, é possível verificar que “First Cow” não está apenas empenhado em transportar o expectador para o espaço e tempo da obra, como também oferece uma experiência muito tátil. O design sonoro está sintonizado para que o som das aves e de toda a fauna envolvente sobressaia, a terra que é pisada pelas botas das personagens é palpável e o cheiro fresco da natureza consegue adivinhar-se. O cenário, que nos chega no formato de tela clássico – 1.37:1 -, remonta a uma época em que Oregon estava a dar os primeiros passos em direção à civilização, algo que se aproxima de uma forma muito específica do cânone do cinema do velho oeste.

Chief Factor

No entanto, não fosse a gentileza das prestações dos dois protagonistas, muito do que foi falado relativamente à mestria da recriação do contexto externo seria oco. Quer Cookie como King-Lu vêm de mundos muito diferentes, mas naquela janela de tempo o laço que desenvolvem é um dos aspetos mais interessantes do filme. Quer o ator John Magaro como Orion Lee acrescentam classe e compostura nas suas interpretações, criando uma relação terna que nos deixa a ponderar o futuro das personagens assim que os créditos finais começam a rolar.

À semelhança desta amizade, os movimentos ligeiros da câmara são precisos e delicados, contando mais história do que quaisquer diálogos. E assim é “First Cow”: subtil, com um ritmo muito deliberado, um convite à observação e à vivência de um episódio da vida de personagens esquecidas por entre a poeira histórica. Uma peça contemplativa que tem um lugar cativo no meu Top 10 do final do ano e confirma a cineasta como uma das melhores entre os seus contemporâneos.

Podem ouvir o Podcast sobre este filme aqui!

Bernardo Freire

Rating: 3.5 out of 4.

IMDB

Rotten Tomatoes

One thought on ““First Cow”: O drama independente do ano

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