“Terra Sonâmbula” (1992) surge como um romance de profunda incompreensão para com a realidade, daí a sua vertente auto-reflexiva, que sugere que o verdadeiro trabalho parte de cada um, para porventura se tornar colectivo. Estamos em guerra e o mundo está um caos; para espalhar a sua realidade, Mia Couto, a partir de uma narrativa catártica, além de uma ambivalente reflexão social, promove um grito (literário) pela liberdade, combatendo a censura do seu país.
Desta forma, anseia não só a tentativa de eliminar pré-conceitos, de reformular mentalidades, como também se verifica um aprofundamento da sensibilidade do autor, que visa transpor a conjuntura atroz em que vive. A história surge, portanto, como a oportunidade de reconhecimento social, que compromete o escritor à tentativa incessante de reagir ao mundo e lutar por algo mais.
O romance põe a descoberto, no fundo, o tratamento mais pessoal e sem rodeios das relações de poder na nossa contemporaneidade, com enfoque num passado horrendo marcado pela opressão do povo e pela diferença atroz de classes, na qual a igualdade é um dos fortes princípios em escassez. Tenta, portanto, acima de tudo, traçar o mundo, observando-o, permitindo não só um diálogo rico e mudo entre o criador e o espectador, havendo, desta forma, uma elevação da linguagem literária a um patamar quase catártico.
No fundo, é um romance ensaísta, que visa desmistificar classes dominantes e desigualdades, e que por cima tem uma forte vertente de aprendizagem, mas não só por esse prisma; porque se “devastação” e “desesperança” são duas das palavras de ordem nesta obra, ela grita a esperança de um novo tempo; um tempo que tem na sensibilidade de um quotidiano em ruínas o seu apanágio.
Decerto, a obra literária, toda ela, é um espaço profícuo de reflexão, de (uma tentativa moral de) eliminação de padrões, desconstrução de “acordos” sociais e aprimoração ética de uma modernidade em decadência. A partir dela, temos a fragmentação do eu, do nós, a redefinição da cultura universal, almejando novos, e puros, padrões e orientações literárias. Mas, concretamente, é nessa ruptura que se faz para com a tradição colonial, que há a tradução mais clara e objectiva da dualidade dominador-dominado.

Neste sentido, as literaturas africanas em particular fazem sobressair, precisamente, a conjuntura maioritariamente precária dos povos, como meio para uma expressão artística maior, denunciando comportamentos e “contando” a história das mentalidades humanas.
Esta é uma obra fortemente marcada pela utilização de recursos expressivos e estilísticos “de intervenção”, digamos, a hipérbole e a ironia. Desta forma, há um claro distanciamento físico do narrador, que vai relatando a vida, sem nunca deixar de incitar à reflexão e, claro, à desconstrução daquilo que “vemos”, ou melhor, que vamos sentindo. Mia Couto, sendo um dos raros casos de escritores que têm a capacidade para elevar o léxico e a sintaxe a um nível sublime, serve-se muitas vezes de neologismos para, portanto, enriquecer a linguagem literária portuguesa.
Para isso, através da sua criatividade e capacidade para reinventar a linguagem, aliadas ao seu sentido de humor, investe na renovação literária, abrilhantando a sua poética com muita autenticidade. Mas para o descrever verdadeiramente enquanto escritor, é preciso dissecar a sua escrita, evidenciando os traços mais flagrantes, por exemplo: o realismo não só presente nas acções vertentes humanas das personagens, como também transversal ao contexto social em que estão inseridas; o humor, como aqui já foi referido, que através da beleza da sua escrita consegue transformar a crueldade da guerra civil moçambicana em magia literária, levando o leitor consigo rumo a uma viagem transformadora pelo seu território ficcional e, no entanto, tão actual e verdadeiro.
Esta viagem entre o rapaz e o velhote, Tuahir e Muidinga, numa condição de refugiados, fá-los confrontarem-se com um imenso leque de experiências humanas, emocionais, que metaforicamente eleva a sua esperança de um mundo melhor, de uma condição mais pacífica, que, dessa forma, os expulse da conjuntura catastrófica em que estão inseridos, transversal a todo o colectivo.
Assim, o caminho que vai sendo percorrido pelas duas personagens possibilita a exploração de muitos lugares, sem um trajecto pré-definido, mas sempre com o sonho de chegar a um refúgio da guerra. Pelo percurso, vão encontrando pessoas na mesma situação que eles, e isso enriquece imenso o romance, precisamente na forma como todos vão aprendendo com todos, com as personalidades de cada um e com o passado e a bagagem que assiste a cada personagem.
Desta forma, podemos ver o distanciamento para com o local de partida como uma metáfora do passado, e o destino incerto que tanto almejam uma metáfora para o futuro. Durante a viagem, a identidade de cada um vem ao de cima e, claro, sofrem uma evolução ao longo do enredo. Ou seja, há um deslocamento físico, em busca de um lugar indefinidamente desejado, e um deslocamento emocional, na perspectiva em que vão ampliando as suas fronteiras subjectivas, rumo a uma certa universalidade moderna. É precisamente nesta visão que temos, efectivamente, um romance de aprendizagem humana e intelectual.
Parabéns pela resenha!