A partir de textos criados pelo pintor, dramaturgo, romancista, ensaísta, poeta e escritor Almada Negreiros, uma das principais figuras do movimento futurista português na primeira metade do século XX, “al mada nada” chega-nos em formato de ensaio gravado, onde a arte física se mistura com a magia das câmaras. Uma experiência multidisciplinar que prova que todas as áreas artísticas estão constantemente de mão dada.
A peça de Ricardo Pais, que conta com a realização de Luís Porto, tem um início a fazer lembrar um pouco o filme-concerto dos Talking Heads, “Stop Making Sense” (Jonathan Demme, 1984). O rádio é o elemento comum, contudo, em “al mada nada” temos um acrescento que nos irá acompanhar ao longo de toda a peça: a percussão de Rui Silva.
Somos prontamente confrontados com uma dança solo de um soldado, uma mistura de hip-hop e movimentos de capoeira, uma demonstração de linguagem que de seguida se estenderia a um grupo mais alargado de dançarinos. Para ser mais preciso: seis – Bruce Almighty, Deeogo Oliveira, Lagaet Alin, Max Oliveira, Mix Ivanou e Pedro França (Momentum Crew).
Esta peça “celebra a sensualidade, a cor, o movimento, coisas que Almada Negreiros viveu apaixonadamente“. Para dar voz às palavras e à poesia do escritor, temos o actor Pedro Almendra – este também conhecido pela interpretação do político Francisco Sá Carneiro no filme de Patrícia Sequeira, “Snu” (2019). Almendra tem uma vocalização cativante, oferecendo uma energia muito própria à poesia das palavras. A maioria do tempo em monólogo, este é uma espécie de shaman do grupo de dançarinos, transportando o espectador para o centro da narrativa.


“al mada nada” “instala‑nos numa vila portuguesa à beira‑mar onde, num quartel, se preparam à pressa soldados para participar numa guerra longínqua e por onde passa uma família de ciganos que promove um indigente espetáculo de saltimbancos“. Devemos ter em conta que para Almada Negreiros “o teatro é uma espécie de tecido dérmico“. Segundo este, “corpo de ator que comunica através do gesto e da voz“, faz da dança algo tão representativo da mensagem quanto as palavras.
A maioria da obra é-nos comunicada através de uma dança livre e intensa, à margem do dito espetáculo de saltimbancos, sempre com música e declamações a “preencher o espaço vazio”. Todos os intervenientes funcionam como uma banda, onde todos têm o seu protagonismo, mas com a finalidade de uma mensagem que só é possível no seu conjunto.
Desde “um caleidoscópio português em que se imbricam homens-cavalo, arraiais de verão, dramas de namorados, memórias de uma semi-imaginária Emissora Nacional, um sol a pique e um luar de acetileno“, a peça passa por transformações sonoras muito interessantes – essencial para o envolvimento na experiência dos sentidos. Desde o folclore ao ambiental com toques de Jon Hassell, um lado mais tribal surge como pano de fundo para o texto sexual, provocador e físico de Almada Negreiros.
Tanto a dança como a música são uma extensão das palavras, juntando ainda a forma como visualizamos esta peça: através do ecrã. Quando juntamos o cinema ao teatro, o resultado é uma maior proximidade para com a obra de arte. Ao vivo estamos fisicamente mais próximos dos intervenientes, os nossos sentidos permitem-nos captar as coisas de forma diferente, mas com a câmara estamos mais próximos dos pormenores. E isso também traz as suas vantagens. Compreendemos melhor os movimentos e as expressões dos atores, como no caso de Pedro Almendra, que através de um olhar penetrante, estamos constantemente a levitar por um mundo de fantasia.


Como um crítico de classes sociais, Almada Negreiros via nos saltimbancos a ponte entre o rico e o pobre, entre a nobreza e o povo. Outro factor importante é a ligação do artista ao circo, pois para ele estas figuras mascaradas representavam emoções, mais do que personagens. “Al mada nada” é precisamente isso: a junção de relações humanas, da condição da arte e da condição do próprio artista.
A certa altura, vemo-nos embriagados com as palavras proferidas por Almendra e só nos perguntamos o que mais pode acontecer naquele palco. De forma bastante clara, esta peça traz-nos comédia, drama, figuras, sensualidade e arbitrariedade. Graças ao excelente trabalho cinematográfico, até a fotografia se destaca ao mostrar-nos pontos de vista que sentados numa cadeira seria impossível captar. O trabalho dos dançarinos fica muito a ganhar com esta proximidade, que revelam estar a um nível altíssimo.
Desde os figurinos por Bernardo Monteiro à cenografia por Manuel Aires Mateus, estamos perante uma experiência que toca em variadas linguagens e campos artísticos, que em vez de criar rupturas entre eles, une-os de forma irrepreensível, resultando assim numa viagem rica em sentidos. Não é apenas uma experiência, são várias. Tudo num palco.