“Fractured” (2019) é um filme repleto de intelectualidade. Intelectualidade no sentido em que a mente humana é quem brilha, ao lado do actor Sam Worthington – interpretando Ray Monroe, o protagonista – conhecido pelo papel de relevo em “Avatar” (2009), que se confunde na própria atmosfera e amplitude da sua cognição – ou, talvez, mais concretamente, da sua inconsciência.
O actor dá uma força enorme à narrativa, com a sua emotividade, compromisso e vontade de se fazer ouvir. Mas, para entendermos melhor este raciocínio, importa realçar que a acção começa com Ray numa viagem de carro, juntamente com a sua esposa e filha – Joanne (Lily Rabe) e Peri (Lucy Capri), respectivamente – a regressar depois de passar o dia de Acção de Graças com os seus sogros.
No entretanto, consegue-se perceber, através de uma discussão durante, precisamente, essa viagem de regresso, que o casamento entre Ray e Joanne estava longe de estar nos melhores dias. Algo que mais tarde íamos entender como o possível resultado de um vício com o álcool por parte de Ray que, porventura, terá minado um pouco as coisas entre eles ao longo do tempo, apesar de ele estar num grupo de reabilitação e de já não beber há uns bons anos.

Mas, a verdade é que o que mais sobressai inicialmente na narrativa é a “confusão mental” que Ray vai, sucessivamente, sofrendo ao longo de todo o filme, através de breaks de atenção, de vozes interiores fora do contexto, de um estado de, por vezes, profundo alheamento. Algo que íamos entender já numa acção avançada do filme, onde se descobre que há uns anos Ray perdeu a sua primeira esposa, grávida, num acidente de viação, algo que à primeira vista se deveu, precisamente, a ele estar embriagado durante a condução.
Posteriormente, eles param numa estação de serviço e a sua filha acaba por se desviar por breves instantes, curiosa por um balão perto dela que dizia “as melhoras”. De realçar, antes de prosseguir com o enquadramento mais imediato do filme, que a banda sonora, a atmosfera que vai sendo criada para elevar a película e, claro, tentar quase que nos transportar para a acção cinematográfica está, efectivamente, bem conseguida.
Assim, e após o aparecimento de um cão que ameaçava atirar-se a Peri, ela em desespero foi-se distanciando sem olhar para trás. Entretanto, Ray apercebeu-se do sucedido mas já era tarde de mais. Peri caiu num buraco que estava em obras, tal como Ray que se esticou para a conseguir salvar, batendo com a cabeça.
Entretanto, Ray “acorda” naquele aparato, após uns bons segundos de alheamento profundo, e a esposa chega, surpreendida e preocupada com a situação, apercebendo-se que Peri tinha deslocado o braço. Seguiram, portanto, para o Hospital. Após esta situação, percebemos que a racionalidade de Ray se deteriorou e que os tormentos do seu passado estavam cada vez mais presentes. Este filme consegue transpor, exactamente, essa realidade de que o Passado pode interferir, de maneira feroz, na nossa vida, no Presente, se não formos capazes de deixar tudo para trás das costas e seguir em frente.

Chegando ao Hospital, Ray tem que tomar medidas perante tamanha espera para socorrer a sua filha, e vai-se apercebendo de algumas coisas estranhas. Vê algumas movimentações suspeitas, alguns telefonemas fora do comum, e vai começando a suspeitar de um complô do Hospital para um esquema criminoso. Mais à frente vamo-nos aperceber que a suspeita teria a ver com tráfico de órgãos. Acontece que, finalmente, a filha segue para tratamento, juntamente com a mãe, que a acompanhou para um TAC, no rés do chão do Hospital – suspeito –, de prevenção e sugestão do médico, uma vez que a filha tinha caído de costas.
Qual não é o espanto de Ray quando percebe que já se passou imenso tempo desde que elas seguiram para o TAC e, inclusive, o mais grave de tudo, no Hospital garantiam-lhe que apenas lhe tinham tratado a ele, à ferida da sua queda e que não tinham admitido nenhuma Peri, nem tão-pouco permitido a ida dela e de Joanne para um TAC. Afirmavam que ele estava amplamente confuso e que precisava de apoio psicológico, enquanto que Ray apenas alegava desaparecimento e rapto para um esquema criminoso.
Assim, e após envolver a polícia e uma psicóloga, vai-se tendo cada vez mais a certeza que tudo isto não tinha passado de um devaneio da cabeça de Ray, afectado psicologicamente pela morte trágica da sua primeira mulher (grávida), ao ponto de Ray duvidar de si mesmo e de tudo isto. No entanto, ele vai até ao fim na sua história e, na sua imaginação ou na própria realidade – eis a questão – conseguiu salvar a sua filha e esposa do alegado tráfico de órgãos.
Desta forma, este thriller fascinante realizado por Brad Anderson consegue deixar o espectador na dúvida até ao fim, fechando a cortina de maneira bastante digna e inteligente, e fazendo lembrar outro enorme filme sobre a psique humana, “Shutter Island” (2010). Essencial, ofegante e imprevisível são as palavras de ordem para esta grandiosa produção.
Por um cinema feliz.