Hoje em dia, e naturalmente desde sempre, o papel do leitor revelou-se como tudo menos passivo, na tentativa de estabelecer conexões entre o que é escrito e quem escreve (o que se lhe vai na alma). Ser um (bom) leitor passa, sobretudo, por prestar uma atenção absoluta àquilo que se lê, não descorando a sua própria interpretação sobre o real – e sendo, sempre, capaz de o separar da ilusão, do sonho, da irrealidade. Na poesia, por exemplo, isso é muito difícil, uma vez que essas realidades (fascinantes) estão íntima e eternamente ligadas.
Ser um autor passa um pouco por ser uma espécie de co-autor da obra. Nesse sentido, (o nosso) António Lobo Antunes uma vez disse, precisamente nesse sentido: “os livros deviam ter, não o nome do autor, mas o nome do leitor: o livro é escrito pelo leitor quando o está a ler“.
Portanto, se por um lado, e enquanto leitor, há que completar muito do que não está escrito no texto, seja através de sentidos vagos ditados pela nossa inconsciência, ou pela “simples” imersão na beleza lírica da história, o que é facto é que o verdadeiro leitor de hoje, digno desse nome, consegue ir lado a lado com o autor na tentativa de elevar a Literatura a outro patamar, mais bonito, mais humilde, mais colectivo.
Efectivamente, a certa altura na História da Humanidade, o chamado “Estruturalismo” veio dar a ideia de um autor empírico (cidadão) que é deixado para segundo plano, precisamente para o texto vir à superfície, ganhando substância. Ora, desta forma, olhar para a materialidade do texto – a voz não intencional – era, na altura, o grande desígnio, o que sugeria, concretamente, que o verdadeiro autor do texto era, na verdade, a cultura.
Não deixa de ser interessante pensar que, portanto, a memória era vista como a “mão invisível” por detrás de toda a genialidade literária, e através da qual o texto deveria comandar tudo. Ou seja, a experiência e o saber eram os alicerces intelectuais mais reconhecidos a posteriori.
Decerto, o autor – personagem moderna que nasceu no Renascimento (séc. XVI) – surgiu num contexto de prestígio do indivíduo, do Homem, uma vez que, até então, a autoria era anónima (na época medieval), o que sugere uma certa influência da religião sobre o dito “orgulho individual”. Por outro lado, ao longo dos séculos, o conceito de autor foi-se consolidando, tendo sido os críticos literários fundamentais para desenvolver o sentido reflexivo, evitando os dogmas e o pensamento autoritário. Outra das grandes tendências da época estava na associação da leitura da obra ao autor como espelho, isto é, na obsessão por vestígios e pegadas de quem escreve.
“O espelho e os sonhos são coisas semelhantes, é como a imagem do homem diante de si próprio.” – José Saramago
Assim, o leitor, nesta rica panóplia de património intelectual e de mentalidades, surge como a esperança indelével e mais digna da ideia de que não existe cinema nem literatura sem leitores. No entanto, é o autor que atribui a função, quase heróica e catártica, ao “cidadão” comum de viajar sob o seu mar – nem sempre consciente – de intelectualidade, ciente de que precisa, eternamente, dessa parceria humilde, irracional, mas bem digna, de contar uma verdade bem maior que aquela que está escrita.
A leitura é uma das maiores dádivas que a Humanidade, não conscientemente, percebeu ser essencial para conseguir sobreviver a este caos que, segundo Saramago, “é (apenas) uma ordem por decifrar“. Por isso, decifremo-la juntos, com carácter, felicidade, imaterialidade e sonhos… O sonho de um dia fazermos alguém feliz simplesmente porque abrimos os olhos à Arte que, nunca deixando de estar, passou a Ser.
Pintura de Franz Dvorak, “Thoughtful Reader” (1906)