Não tem jeito. Há certos livros que nos chamam uma vez ou outra para conversar com eles. Sendo “Ensaios“, de Michel de Montaigne (1533-1592), a boa prosa está garantida. Embora não tenha nenhuma crença em transmigração de almas ou mesmo almas afins, parece que me transporto para a biblioteca do castelo de Bordeaux, onde Montaigne se refugiou após se cansar dos assuntos comezinhos, ele que chegou a ser prefeito da cidade.
Há algum tempo que me venho a refugiar. De conversas inúteis a extremismos partidários, de pessoas que insistem em ter uma visão moldada pela viseira do cavalo: só olham em uma direção. Argh! Assim, retomo a leitura de “Ensaios” e leio o Mestre aludindo às coisas do seu conturbado século. Mentalmente, provoco: “Estivesse o amigo neste século XXI”! Ele trata de tudo. Foi Cristovão Tezza, em reportagem para a revista brasileira Veja, de 21 de março de 2012, quem comparou Montaigne a um blogueiro atual.
Nas duas horas diárias dedicadas à leitura, aproveitando o sol que aquece a minha varanda, vou me envolvendo com os chistes, as provocações, as confissões, as intimidades e tudo isso vai além do observável atualmente, onde uma página de Facebook apresenta o diário desimportante do infeliz que posta o que come, o que bebe, a balada que frequentou, etc. Todos somos reféns disto, já descrito em “Eclesiastes“, a ver: “Vaidade, vaidade. Tudo é vaidade“.

Inaugurador do género ensaio, Montaigne despe-se do papel de filósofo por se entender um homem comum. Não é falsa modéstia, é simplicidade mesmo. Como mandou gravar citações de grandes pensadores no teto da sua biblioteca (aliás, uma excelente sugestão turística para se fazer em Bordeaux) ele reverencia os autores clássicos que lia, como Platão (428 a. C. – 347 a. C.), Cícero (106 a. C. – 43 a. C.), Catulo (87 a. C. – 57 a. C.), Virgílio (70 a. C. – 19 a. C.), Horácio (65 a. C. – 8 a. C.), Ovídio (43 a. C. – 17 d. C.), Séneca (4 a. C. – 65 d. C.), entre outros. Vasta cultura, obrigado Montaigne, por me apresentar poetas romanos clássicos.
A exemplo do que fiz para a Revista Conhece-te, selecionei com exclusividade algumas ideias de Montaigne para ilustrar esta minha humilde resenha. Grifei à medida que lia e despeço-me aqui, dando voz ao meu amigo, que esquentou a minha alma, análogo ao que o sol faz ao meu corpo. Em alguns momentos, entendi o peso da idade (os meus 48) tendo que me adaptar mentalmente assentindo com Montaigne que já reclamava da perda de viço e jovialidade. Existe sempre uma filosofia para nos consolar dos infortúnios dos dias. Sem mais delongas, vamos ao que realmente interessa:
“Um excesso de aplicação às coisas de nonada desvia-nos das importantes. Fácil é o caminho desses homens que veem as coisas superficialmente!“
“Um jovem perguntava ao filósofo Panécio se o sábio deve amar. Respondeu-lhe Panécio: ‘Deixemos o sábio de lado, não somos sábios, nem eu nem tu, e não nos comprometamos em coisa que tão violentamente comove a ponto de nos tornar escravos de outrem e desprezíveis a nossos próprios olhos’.“
“A filosofia não se opõe aos prazeres naturais, conquanto não se abuse deles. Recomenda a moderação e não a fuga.“
“Aconselhar-me-ão a voltar-me para as mulheres que estejam em condições iguais às minhas. Lindo resultado! ‘Não quero arrancar o pelo de um leão morto’ (Marcial).“

“No primeiro plano da feiúra coloco as belezas artificiais. Emones, jovem adolescente de Quio, imaginou que, em se adornando, conquistaria a beleza que a natureza lhe recusara. Encontrando o filósofo Arcesilau, perguntou-lhe se um sábio se podia enamorar. ‘Sim’, respondeu o interrogado, ‘desde que não se trate de uma beleza falsificada como a tua’.“
“Machos e fêmeas saem de um mesmo molde e que, salvo pela educação e os costumes, em bem pouca coisa diferem. Platão dá-lhes na sua República os mesmos direitos e deveres, na guerra como na paz. E o filósofo Antístenes não estabelecia distinção entre a virtude dos homens e a das mulheres. É bem mais difícil acusar um sexo do que desculpar o outro. Atente-se para o ditado: o roto ri do esfarrapado.“
“Para um casamento feliz, é necessário unir um homem surdo a uma mulher cega.“
“Quem prova demais, torna-se suspeito; as justificações excessivas são acusatórias.“
“A quem me perguntasse o que mais contribui para o êxito no amor, responderia: em primeiro lugar a oportunidade, em segundo a oportunidade e sempre a oportunidade. Desta tudo depende.“
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