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Para quem ainda não se aventurou pelos romances de Fiódor Dostoievski (1821-1881), a julgar pelo tamanho de algumas das suas obras primas, tais como “Os Irmãos Karamazov“, “Crime e Castigo” e “O Idiota“, poderá privar-se da alta carga dramática e filosófica existencial dos seus escritos. Sugiro como começo a leitura das suas novelas, e “O Eterno Marido” cumpre bem esta premissa. Se esta é menor em extensão (111 páginas, Aguillar Editora, 1963), não é menor em qualidade. Somos apresentados a Vielhtcháninov, de 39 anos, que vem a São Petersburgo para olhar de perto um processo do qual é reclamante.

Sentindo-se desmotivado e velho, meio hipocondríaco, agarra-se a este processo amolando o seu advogado e toda a sua conduta é colocada à prova quando se encontra com Páviel Pávlovitch Trusótski, um “velho amigo” da cidade de T… que vive a maior parte do tempo bêbado. Comunica o falecimento da sua esposa, Natália Vassíliena (de tísica) e aí é que se inicia o imbróglio. Pois Vielhcháninov havia sido amante dela, e aquela entrevista inopina faz preocupar o nosso protagonista.

Trusótski é de natureza inconveniente. Tentara aproximar-se do seu amigo de forma sorrateira e está à porta do amante às três da manhã. Imaginem o susto do nosso amigo Vielhtcháninov. A construção dos diálogos é marca indelével do seu autor e aqui a ironia e a hipocrisia correm soltas. Após marcar uma entrevista, o nosso hipocondríaco vai até o hotel no bairro mais barato da cidade e vê que Trusótski leva uma vida devassa, com bebidas e mulheres. Trata muito mal a garotinha Lisa, de oito anos, e ele se compadece desta relação de abuso.

Sente no ar e ficamos a saber que ela era a sua filha, e nada mais adequado do que levá-la a uma casa de campo, para ser acolhida temporariamente, pela amiga Klávdia Pietrovna Pogoriéltseva, enquanto ele se acerta com o bêbado. O drama é que Lisa está adoentada, vindo a falecer para desfortúnio do pai e a indiferença do marido traído.

As entrevistas são ríspidas e sugerem um embate para breve, mas o nosso bêbado surpreende “o amigo” com uma solicitação bem ao seu estilo: inconveniente. Quer apresentá-lo como amigo na casa do senhor Zakhliébinini, coincidência das coincidências, vem a ser a outra parte do processo movido pelo nosso protagonista. O anfitrião faz ver que os ajustes dos 60 mil rublos estão garantidos e revela-se um cavalheiro, sendo as suas filhas adoráveis.

O nosso doidivanas pretende a corte a uma das filhas e Vielhtcháninov, a princípio desmotivado para este encontro, acaba a roubar a atenção e percebe que as moças tratam Trusótski com desdém, inclusive é devolvida a ele para que devolvesse ao amigo uma pulseira que selaria o compromisso de noivado.

Trusótski percebeu o óbvio: que o amigo fez melhor figura que ele. Retornam à cidade e os diálogos são apimentados quando recebem a visita de um jovem imberbe que vem comunicar o seu noivado com a rapariga a qual ele pretendia. Com a ousadia que cabe bem aos jovens, Alieksandr Lóbov é impertinente e a conversa flui para tiradas sarcásticas e nada amistosas.

O certo é que as questões de Vielhtcháninov em São Petersburgo estão findadas e ele se despede do seu inimigo íntimo, sentindo pena daquele cinquentão endinheirado e confuso. Sente melhorar o seu estado de saúde e pretende viajar para esclarecer as ideias, assustado com o quanto o destino nos prega partidas.

Nma das estações ferroviárias, tempos depois, depara-se com uma cena atracada de passageiros e observa uma bela mulher que está à espera do marido, e nada mais surpreendente para o desfecho que este marido fosse Trusótski. Mais diálogos acalorados e a certeza de que a vida brinca connosco, oferecendo-nos inimizades íntimas e o epíteto que empresta título ao livro divide ironicamente os homens entre maridos e amantes, numa crítica aguda e divertida acerca das relações humanas.

Uma leitura saborosa é proporcionada em mais uma bela história de Dostoievski. Se vale como comentário final, não confundam alhos com bugalhos e não adiram a boicotes e cancelamentos russos devido à guerra na Ucrânia. Tomemos cuidado com a russofobia. Uma coisa é o assassino Putin, outra coisa é o povo russo e o legado que muitos génios nos deixaram: Dostoievski é um destes baluartes.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 3 out of 4.

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