Se há epidemia que tem persistido à passagem inexorável do tempo, é a epidemia da violência doméstica. Relatório após relatório, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) tem acumulado estatísticas inquietantes, que nos deviam envergonhar a todos. Embora seja um crime ancestral, a sua banalização em pleno século XXI demonstra o quanto Portugal ainda tem a progredir em matéria de consciência social e, acima de tudo, educacional.
Neste contexto precário, “Submissão”, o drama do cineasta e argumentista português Leonardo António, procura, ainda que de forma cinematograficamente desinteressante, tratar as nuances pessoais e jurídicas de um caso de agressão sexual no seio do matrimónio. Munido de boas intenções, pessoaliza o sofrimento em Lúcia (Iolanda Laranjeiro), cabeleireira, que na noite em que foi alegadamente violada por Miguel (João Catarré), o seu marido, foge de casa e denuncia-o à polícia.
Apesar de ter mais dinheiro, poder, e de ser filho do vice-procurador-geral da República, a queixa não cai em saco-roto. Determinada em levá-lo à justiça, Lúcia formaliza a acusação e consegue levar o caso a tribunal, onde enfrenta uma mentalidade patriarcal que olha para a agressão sexual entre marido e mulher de sobrolho erguido. Uma guerra verbal desigual, na qual a queixosa, na qualidade de assistente, tem de deixar inequívoco a um juiz preconceituoso de que foi violada pelo arguido.

O conflito judicial torna-se, desta forma, o pilar do pathos do filme, que António encena com uma surpreendente vulgaridade e monotonia. Existe uma unidimensionalidade insossa na forma como decorrem os relatos na sala de tribunal. Por sua vez, os envolvidos retratam um casamento infeliz, corrompido por expetativas, profundas falhas de comunicação e, por fim, traições. Miguel conta-o de forma muito espontânea, sublinhando o amor que sempre sentiu – e ainda sente – por Lúcia. Neste ponto, a interrogação inexistente do procurador (João Didelet) é exasperante, aspeto que só posso entender como preguiça argumentativa. Pelo contrário, o advogado de Miguel, interpretado por José Raposo, é frontal e apropriadamente metediço, guiando a narrativa para o seu ápice dramático.
O resultado é uma dependência excessiva do trabalho dos atores, que correspondem com relativa constância. No papel principal, Iolanda Laranjeiro, despe-se física e emocionalmente, de modo a levar por diante as quase duas horas de “Submissão”. É uma estreia talentosa no grande ecrã que demonstra alguns matizes da atriz, principalmente no doseamento entre a explosão e a contenção. De outro modo, João Catarré representa com poder de síntese o macho ferido e sensível que só engana quem de facto tem a priori um viés a seu favor. Já Maria João Abreu, na sua derradeira atuação, está subserviente a um argumento que fundamentalmente a coloca a expor informação.

Pois uma das maiores frustrações de “Submissão” é o facto de ser prolífero em falas e pouquíssimo hábil em expressar visualmente os tumultos do enredo. Mesmo quando utiliza planos aéreos horizontais sobre Lisboa para comunicar o estado plural e estrutural da violência doméstica na cidade, a sua repetição excessiva denota falta de génio criativo. Cumulativamente, esta fragilidade é sintoma de que, apesar do objetivo honorável de alertar para uma concatenação de injustiças, os contornos formais que o filme assume são insuficientes para estabelecer uma visualização envolvente.
Ficamos com o cerne de que, de certo modo, Lúcia e Miguel são um dos muitos casais calamitosos que conhecemos ou que iremos conhecer. Sem distinção de idade, género ou orientação sexual. Com um sem fim de variâncias próprias de cada ambiente íntimo, um espaço que se quer acima de tudo seguro e afetivo. Uma sociedade que acrescenta vírgulas e adversativas depois de condenar alguém por violência doméstica, perpetua um estado de impunidade que não rima de todo com justiça.
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