“Du Levande” (em inglês, “You, the Living” e em português, “Tu, que Vives“) é estranho. Mas reconhecível. Pego-me a assistir o sueco sem legendas e obviamente a não entender qualquer diálogo. Atentamente chego ao fim, com a sensação de ter visitado quadros existencialistas num museu de Estocolmo. Hora do dever de casa. Revejo todas as partes com legendas sofríveis em espanhol, leio algumas críticas e fico a par que captei o estranho mundo do seu realizador.
Aliás, é tudo estranho na apresentação do editor do Barrete, Diogo Vieira, para mim. Se nos apercebemos da trilogia iniciando pelo último, o certo é que a sobreposição de quadros independe de ordenamento, e o mundo cinza de Roy Andersson construído totalmente no seu estúdio leva-nos à perceção indelével de que a película é dele.
O existencialismo francês de Sartre e companhia já nos apontava uma certa náusea ao viver. Como se esse sentimento fosse impregnado como uma mosca sobrevoando cada uma de nossas existências. Assistindo a “Du Levande”, um sopro de desesperança invade-nos, pois se atribuímos à Suécia o excelente país do bem-estar social, indica-se o facto de ser um dos países com maior taxa de suicídio no mundo. Obviamente que Andersson não exibe o colorido, nem sabemos se estamos na capital ou meramente numa vila (parece ser o caso), mas os seus personagens a la zumbis são enigmáticos.

Se o inferno são os outros, outra máxima sartriana, é insuportável conviver com um ensaio de tuba no apartamento acima. Nada mais natural que o vizinho bater o cabo da vassoura no teto, ocasionando a quebra do gesso e o consequente desabar do seu lustre. Num parque um casal gorducho e o cão estão em vias de separação. A pobre mulher chorosa culpa os dois pelo seu sofrimento. Que tolice! todos nós sofremos. Uma jovem fã de uma banda apaixona-se pelo vocalista e é na juventude que o diretor aspira ainda a alguma beleza, por mais desencantador que sejam os seus quadros.
Afinal, é o bizarro que dá o tom de ações extremadas, como o apuro da mesa de refeições com os seus talheres meticulosamente ajeitados até que um desajustado puxa a toalha, destruindo peças com dois séculos. Crime horrendo, punível com a pena de morte e nada como juízes celebrarem isso com canecões de cerveja. Espectadores preparam-se para assistir à execução, com a fritura de um cérebro ao vivo e a cores. Cores no sentido figurado, na película nada é a cores.
Uma relação sexual bizarra, com uma obesa com um chapéu estranhíssimo alemão gozando em cima do seu esposo magricela. Um psiquiatra que desistiu de tentar recuperar os seus pacientes, o abrupto da morte que vem sem aviso prévio e quando os espectadores retornam para assistir a mais trechos, ficam com a sensação de estar a percorrer as galerias novamente.
Num exercício de imaginação, sinto que o meu próprio levantar, preparar o café, sentar-me defronte ao computador, escrever este texto, enviar para OBarrete, a seguir preparar o banho, desfazer a barba, vestir o meu fato e sair para trabalhar, pois bem, parece que tudo isso acinzentado está sob a câmara do realizador. E isso tudo está ajudado nestes dias, com as Minas Gerais debaixo de uma cortina de água que deixa tudo nublado. Europeus, esqueçam o país do carnaval, das mulatas e das praias cariocas. É como acreditarem no coelhinho da Páscoa!

Há muito mais tristeza em “Du Levande”. Mas toda ela é elaborada no bizarro e surreal, daí o nonsense em todas as cenas, digo quadros. Analisamos a profundidade em todos eles, geralmente numa cena cinematográfica apreendemos os primeiros planos, mas aqui é mister observarmos os fundos, o detalhamento, para encontrarmos o propósito. Antes que pensem que o filme induz o espectador a sacar uma arma e a estourar os tímpanos, esclareço que é exatamente essas condições existenciais autênticas que nos levam à reflexão, na perceção do sentido absurdo da vida proposto por Camus.
Geralmente acrescento a ficha técnica da obra com os atores e a equipa de apoio, mas aqui torna-se desnecessário, incluindo a classificação por estrelas. Pareço similar a um crítico de cinema do maior jornal do Brasil, a Folha de São Paulo, que classificou as obras do realizador como um OCNI: Objeto Cinematográfico não identificado. Despeço-me de todos vocês para cumprir os meus fantasmagóricos quadros, antes que a morte me venha buscar de inopino, pretendendo ainda ouvir muitos riffs de guitarras e que a minha casa se possa transformar num comboio para partir para longe, mesmo sendo o longe tão insuportável como este perto que aqui verificamos.
Acordei com a sensação de ter tido a minha vida filmada até aqui. Estranha e vazia, como afinal todas as nossas neste mundo cinza e reflexivo. Vocês, os vivos, estão vivos ainda? Têm certeza disso?!
Se queres que OBarrete continue ao mais alto nível e evolua para algo ainda maior, é a tua vez de poder participar com o pouco que seja. Clica aqui e junta-te à família!