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Porque A Arte Somos Nós

Nestes dias nevoentos, há fantasmas por toda parte. São aparições que causam susto, presenças que trazem sofrimento, sombras que se aproximam, alucinações coloridas em halos que se decompõem aos poucos, numa luz lilás e complexa.

Em Londres, eles andam soltos pelos castelos, nascidos das intrigas reais que terminaram em morte. Aquele monge, outrora aprisionado numa cela, arrasta correntes pelo terraço. A rainha lê na biblioteca com rosto branco de cal. Henrique VIII caminha nos claustros, com a perna ulcerada gotejando sangue. Os amantes são torturados na sala de jantar. Os ponteiros do relógio movem-se. As terrinas espatifam-se ao cair das prateleiras. Há suspiros entre velas que se acendem e se apagam.

Num cenário assim gélido, deve ter surgido o fantasma do pai do Príncipe Hamlet, na tragédia de Shakespeare (1564-1616). Que densa narrativa sobre os conflitos de família, amores, loucura, filosofia, poder e paixões da alma humana. Os sentinelas da fortaleza testemunharam que viram o fantasma do rei morto com os seus próprios olhos e, súbito, ele se materializa para Hamlet. Revela que Cláudio, seu irmão, o matou despejando um frasco de veneno no seu ouvido. Pede vingança.

O escritor e dramaturgo William Shakespeare

Hamlet duvida do fantasma. Atormentado, torna-se cada dia mais solitário e estranho. Monta com amigos uma peça de teatro encenando o assassinato do pai. O recurso do teatro dentro do teatro. Um fantasma na ribalta. Enquanto não mata o seu tio, Hamlet conduz as personagens misteriosas, obscuras e místicas à perdição. Pondera, acariciando um crânio: “Ser ou não ser, eis a questão.” “Ser” é viver. “Não ser” é a morte, a inércia. Suspenso entre esses polos, só lhe restou o silêncio.

E por falar em teatro, o esconderijo do “Fantasma da Ópera” era em baixo de uma casa de ópera em Paris do século XIX. Um romance gótico de Gaston Leroux (1868-1927), que virou filme e musical. Dizem que o fantasma existiu, que era um dos empreiteiros que construíram o imenso teatro, cheio de salas, alçapões e calabouços. Muitos anos depois o seu esqueleto foi encontrado usando fato, chapéu de feltro e um anel de ouro. Chamava-se Eric. A face deformada escondida sob uma máscara. Apaixona-se por Cristine, a jovem cantora.

Desesperado, rapta a amada. Como esquecer o barco a deslizar pelos canais subterrâneos, entre chamas acesas na superfície das águas? O lustre de toneladas de cristais atirado no meio da plateia? O fantasma vai-se mostrando, humanizando-se. Ele e Cristine, num encontro de vozes e de almas, misturam as suas lágrimas de arte, terror e piedade.

Desde a Antiguidade Clássica, o fantasma é utilizado como estratégia literária e dramática. Numa das mais belas páginas da “Eneida“, de Virgílio (…), Troia é atacada pelos gregos e incendiada. O herói troiano Eneias foge, caminha ao longo da muralha da cidadela. Nos ombros, sob a pele fulva de um leão, carrega o pai já velho, o seu passado. Com a outra mão guia o pequeno filho, o seu futuro. A esposa, Creusa, segue de longe os seus passos. Eneias avança através das trevas, aterrado com cada sopro da brisa, cada ruído.

Capa do livro “Eneida”, do poeta romano Virgílio. Montecristo Editora, 2017

Creusa desaparece, arrebatada pelo destino. Teria sucumbido fatigada? Estaria a errar pelo caminho? Eneias grita o seu nome como um louco até que ela surge como um lamentável fantasma, a sombra de si mesma, muito alta, com olhos fundos. Os cabelos de Eneias arrepiaram. Ela então o consola: tudo aconteceu conforme os desígnios dos deuses. Ele viverá um longo exílio, sulcará o mar até chegar a um lugar onde lhe estão reservadas riquezas, um reino e uma real consorte. Que a esqueça. Ela não será levada como escrava das matronas gregas. Que ele cuide com zelo e amor do filho de ambos. Depois de ter conversado com o fantasma, Eneias parte para cumprir a sua missão.

E para ficar no humanismo, lembremos uma passagem cristã. Jesus enviou os seus discípulos para o barco até a outra margem do Mar da Galileia. A noite caiu, o vento soprou forte, veio a tempestade. No escuro, viram o mestre a andar sobre as águas do mar. Ficaram aterrorizados acreditando que estavam a ver um fantasma. Como estava belo o Cristo, transfigurado de luz, dominando a natureza, causando espanto e pasmo.

Não consultemos os mortos, pois eles já pereceram e estão conscientemente num outro lugar. Há dois planos: o dos vivos e o dos mortos. Deixemos que a imanência divina cuide dos assuntos dos homens. Ele ama-nos e envolve-se sempre connosco.

Estamos a lidar com tantos fantasmas: os pensamentos tristes e enlutados de dor. Vultos que brotam das nossas memórias, do poço das nossas lembranças, alojam-se e aprisionam as nossas mentes. Até mesmo antigos amigos parecem ter se transformado em fantasmas. Precisamos de força para derrotar os fantasmas. Abramos as janelas. Respiremos com gratidão o ar da madrugada. Raios de sol desintegram fantasmas.

Nota: Esta crónica será publicada pelo revista “Conhece-te“, do editor Marcelo Rodrigues Pereira, de Minas Gerais.

Raquel Naveira

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