OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

— Pode voltar pra dentro… Hoje ocê num tem que ir pra escola, não…

Achei esquisito meu pai falar isso. Ele vivia me dando bronca quando eu não queria ir pra escola, até ameaçava me bater. Agora falava pra eu não ir.

Reparei que alguns fregueses estavam com cara de espanto, de susto, até de medo.

— Vai ter guerra! – falou o ZéCarapina.

Parei e fiquei tentando entender o que acontecia. Tõezinho, meu irmão, percebeu minha curiosidade e falou:

— O Getúlio suicidou.

— O GetúlioPresidente? – perguntei. — Ou o GetúlioFeiticeiro?

— O presidente.

Por isso não ia ter aula e por isso falavam que podia até ter guerra. Até uns homens que falavam mal dele agora estavam ali com cara de susto.

Eu não sabia se o Getúlio era bom ou ruim, mas gostei… Não da notícia de que ele suicidou, porque podia até ter guerra por causa disso. Mas gostei que não ia ter aula. Quem sabe, não teria aula também no dia seguinte, na semana inteira…

Continuei ouvindo a conversa, sem nem levar a pasta escolar pra dentro de casa. Falavam umas coisas que eu não entendia, como mar de lama, corrupção, Gregório… Seria o SeuGregórioDaSerraria? Não… Não podia ser. Era alguém lá do RioDeJaneiro. E os homens do exército, da marinha, tudo quanto é gente com farda… Muitos não gostavam dele, falou o SeuHonorato, porque dobrou o salário mínimo, que foi pra mais de dois contos de réis… Dois mil e quatrocentos cruzeiros, na fala do SeuHonorato. Os outros falavam em contos de réis.  

— Ara… Salário mínimo – resmungou o ZéBarba. — Quem é que ganha isso? Aqui na Vila, só os empregados do banco e funcionários do governo… O fiscal, o coletor federal e o estadual, as professoras… Mas só as professoras do grupo, que é estadual. As professoras das escolas da roça, que recebem da prefeitura, num ganham nem oitocentos mil-réis.

O Lourenço, que não tinha falado nada ainda, riu alto e falou:

— Ah… As professoras… Ser marido de professora do grupo já foi uma profissão boa, mas tá ruim agora.

— Tá mesmo – concordou o DinoDentista. — Num recebem… Tão com mais de seis meses de atraso. O governo num paga, fala que num tem dinheiro, mas que um dia vai pagar.

— Quem tá lucrando com isso são os agiotas – falou o SeuHonorato.

Eu não sabia o que era agiota. Mas pelo que conversaram em seguida, desconfiei que era um homem que emprestava dinheiro pros outros e, na hora de receber, cobrava muito mais.

— O SeuMunheca inventou uma novidade… Agora compra os salários atrasados das professoras. Paga pouco mais da metade do que elas têm para receber, e elas assinam um documento passando o direito de receber os salários atrasados para ele. Vi uma que tinha dez contos pra receber pegar seis contos dele… Quando receber, os dez contos são dele, SeuMunheca… E ele fez pose de bonzinho, falou que num sabe quanto tempo vai demorar pra receber…”.

Trecho do livro

O livro “O Mistério do Obelisco”, de Mouzar Benedito (Editora Limiar, 2018, 239 páginas) é incrível! Misto de autobiografia e reminiscências de um garoto de sete anos, Dengo, retrata o modo de vida de uma pequena cidade do interior da província de Minas Gerais, uma vila com poucos habitantes e onde todos se conheciam. Como cresci também numa cidade pequena, com os seus 3 mil habitantes, compreendi perfeitamente as locações e o enredo, o modo de falar e de se comportar, tendo aqui o escritor um mérito e tanto.

O escritor brasileiro Mouzar Benedito

Como podem observar no trecho acima, escreve como se estivesse a falar, e essa oralidade dá cadência às páginas e os nomes próprios são ajuntados, exemplos como SeuHonorato e RioDeJaneiro, sendo essa formatação inspirada no escritor angolano Ondjaki. Ao término, fiquei com a impressão de se tratar de um excelente livro de causos.

Denomina-se causos aos casos vividos e retratados de forma arrastada, misturados com fábulas. Oriundo do interior do Brasil, aqui do outro lado do Oceano Atlântico, questiono-me se em Portugal são entendidos estes regionalismos rurais e esse modo característico de se falar. Como pretendo interatividade, leitores portugueses, comentem acerca deste meu questionamento.

E sendo um livro de causos, apanhei-me muitas vezes a passar os olhos como se estivesse a ouvir as histórias. Sem aquela pretensão de raciocinar e entender tudo. Apenas ouvia histórias. Ao final, aquela sensação prazerosa de saber que, a qualquer momento, poderei abrir o livro ao acaso e ler algumas passagens, pois o mesmo é bastante entrecortado e não obedece a uma sequência lógica e linear. O experiente autor, o qual travei conhecimento e estou a entrevistar neste momento, possui o mérito de não escorregar em nenhum momento escrevendo como um adulto as memórias do seu personagem infantil. E isso é um mérito e tanto.

Lá para o meio da nossa entrevista, já percebi que Mouzar Benedito é verborrágico e comecei a rir-me disso. Ele acaba de me responder a uma questão e pergunta: “— Estou sendo prolixo, não? Se quiser, pode cortar!“. Mas não ousarei os cortes, uma vez que a sua fala é acertada e engraçada, profunda e reflexiva. Ouvindo-o, sinto como se tivesse a oportunidade de ter uma consultoria gratuita e já perdi também a obsessão de manter a minha caixa de e-mails com poucas mensagens.

Somente dele, há várias que complementam não essa verborragia, mas essa qualidade de um bom conversador, de um experiente comunicador que tem muito a dizer-nos e para quem aprecia uma boa prosa, ao ler “O Mistério do Obelisco” sentir-se-á numa interminável palestra, e o irreverenciado autor até me ensinou que lançamentos e sessões de autógrafos não precisam de ser sisudos. O escritor tem levado, antes da pandemia da Covid-19, lógico, os seus amigos e leitores (que são muitos) para as tascas, e lá bebem, comem uns petiscos, conversam e Benedito autografa as suas obras, que são várias.

Fica a dica para começarem por este livro, de modo a voltarmos à época idílica de criança quando os grandes centros urbanos eram coisas tão distantes do nosso mundo que a inocência nos fazia sonhar com outros mundos inimagináveis, por exemplo uma visita à capital da província, e como nos faziam bem esses devaneios. Excelente livro, findo por aqui tentando abri-lo numa página qualquer. Para me inteirar de mais um causo.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 4 out of 4.

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2 thoughts on ““O Mistério do Obelisco”: Um livro prazeroso

  1. Rita Mara Silva diz:

    Gostei muito do trecho selecionado por você! Deixa a gente com vontade urgente de ler o livro inteiro. Parabéns ao autor!!

    1. marcelopereirarodrigues diz:

      Rita, muito obrigado pelo seu comentário. O livro todo é um deleite, nos faz retornar à nossa época de miúdo.

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