“Jean-Jacques Rousseau desembarcou na ilha de Saint-Pierre no dia 12 de setembro de 1765. Ele já estivera na ilha em julho daquele mesmo ano, mas no intervalo entre as duas visitas a sua situação agravara-se consideravelmente, pois além de perseguido pelas autoridades francesas e suíças, ele agora era apedrejado pela população inteira de Môtiers-Travers, o vilarejo em que se exilara.
As acusações que lhe moviam eram as mais variadas: vestia-se de arménio, casara-se com uma prostituta, abandonara os próprios filhos no orfanato, questionava a inspiração divina da Sagrada Escritura. No início do mês, a violência assumira tais proporções que ele fora obrigado a transferir-se para um refúgio mais seguro – eis o motivo da sua viagem à ilha de Saint-Pierre.
A ilha situava-se no meio do lago de Bienne e possuía uma única casa, espaçosa e confortável, pertencente ao hospital de Berna. O quarto em que Rousseau se acomodara era dotado de um pequeno alçapão que dava acesso a uma sala subjacente; quando ele advertia a chegada de alguma visita inoportuna, escapava rapidamente através do alçapão. Uma das suas atividades preferidas era passear pelos campos, com uma lente na mão e o manual de botânica debaixo do braço. O seu propósito era catalogar cada espécie de planta que ali encontrasse.
Nas primeiras horas do dia, ele também costumava unir-se aos lavradores, escalando as árvores frutíferas para participar das colheitas. A seguir, remava até ao meio do lago e permanecia estendido no barco com os olhos voltados para o céu. Ocasionalmente ocorria-lhe uma breve reflexão sobre a instabilidade das coisas, mas esta logo se exauria.“

O romance “Arquipélago” (Editora Record, 2006, 127 páginas) apresenta a verve humorística e fina de Diogo Mainardi, jornalista responsável pelas Revistas Crusoé e pelo site O Antagonista, um dos mais celebrados cronistas colunistas da revista Veja, onde permaneceu durante muito tempo e angariou sucesso e polémicas. Neste “Arquipélago”, o narrador está na primeira pessoa e vê-se às voltas com um dilúvio proveniente do arrebentamento da usina hidrelétrica da Ilha Solteira, em São Paulo. O cenário é difuso, incompreensível até, quase kafkiano. Mainardi, sem arrogância, destila toda a sua sapiência ao discorrer acerca de aspetos antropológicos, sociológicos e sobremaneira filosóficos. Intencionalmente, é capcioso ao não dar lugar ao simplismo explicativo.
Cada sobrevivente deste dilúvio nonsense é uma caricatura de si próprio, com todas as suas mazelas e quixotismos – uma espécie do personagem de Lima Barreto (1881-1922), destacado escritor brasileiro, Policarpo Quaresma, sem perspetivas e sem sonhos. Agarrados cada qual a uma tora de madeira que os deixa à deriva, os desabrigados sobreviventes do cataclismo agarram esse fio de esperança com abnegada resignação (perdoem-me o pleonasmo) na abóbada de uma igreja semi-submersa.
Mainardi aproxima-se aqui da sátira refinada de um Jonathan Swift (1667-1745), de um Voltaire (1694-1778), de um Rabelais (1494-1553), autores da mais nobre linhagem. Ora submersos, ora mergulhando à procura de ar, cada desabrigado do livro é uma metamorfose diluída no cinismo e na futilidade. A representatividade na escolha do “desabrigado – líder” é outra sátira bem formulada, nessa sociedade brasileira favorável aos departamentos. As crendices, aliadas à estupidez, encontram na prosa do seu autor um adversário firme. Cartesiano até à medula, o olhar sagaz passeia pelo enredo desconstruindo os preconceitos, combatendo as mandingas e patuás da nossa frágil religiosidade barroca.
Um livro saboroso, porém, indigesto, que nos chama a um estranhamento, agarrados que somos às nossas toras da ignorância e covardia. “Arquipélago” traduz-se no Brasil, a analogia correlata (outro pleonasmo) de um povo pouco afeito à reflexão, mas identificável sim, com vários períodos da História onde a banalidade tomou o equilíbrio como refém. Infelizmente, ainda hoje, vamos sobrevivendo neste país governado por corruptos e onde a famosa expressão “jeitinho brasileiro” é tida como favorável.
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