Um tema que sempre foi bastante recorrente nas narrativas cinematográficas foi a crítica ao sonho americano. Frequentemente associado a uma ganância sem horizonte, os protagonistas que idealizam e perseguem a ‘tangibilização’ desse conceito abstrato apresentam um desafio particular para os argumentistas: torná-los emocionalmente relacionáveis. Não é opção única, é certo.
Podem despertar curiosidade do ponto de vista psicológico ou representar um vazio interior de tal impiedade que todo e qualquer sorriso não é mais do que uma farsa execrável. Neste último caso, aquilo que não podem pedir é que se empatize com a personagem – um erro crasso na mais recente aposta da Netflix, “I Care a Lot”, em português “Tudo Pelo Vosso Bem“.
Escrito e realizado por J. Blakeson, esta é uma comédia negra com elementos de suspense que denuncia como a máquina burocrática, manipulada com mestria, enriquece os depravados e empobrece os debilitados. Rosamund Pike é Marla Grayson, a diretora de um esquema organizado que conta com médicos, juízes e uma associação de acolhimento da terceira idade. Após identificada a vítima, Marla consegue rapidamente uma declaração de incompetência por parte do tribunal, que lhe confere tutela do idoso. De seguida, é só despejar a pessoa no lar, mantê-la sedada e bem comportada, enquanto a casa é vendida e a conta bancária esvaziada.

O primeiro ato é quando o filme realmente tem espaço para brilhar. A apresentação da protagonista, assim como o desenrolar do conceito doentio alusivo ao lar de idosos, é bastante cativante. Os meandros do conluio, assim como as regras e o controlo imposto aos utentes, leva o espetador numa viagem quase surreal. Um mundo desencantado de ilusões e parasitismo. Qualidades que espelham a cabeça desumana de Marla, que Pike interpreta com brio.
Uma mulher cega por dinheiro que cuida da sua aparência como um templo. Usa cabelos curtos e angelicais, assim como vestidos elegantes e saltos altos que compõem a silhueta oca. É um casting que está no ponto, retomando a experiência em filmes como “Em Parte Incerta” (2014), onde a atriz também ludibriava com perícia.
Outro traço de comparação possível entre “I Care a Lot” e “Em Parte Incerta” é o facto de não existir exatamente uma personagem pela qual torcemos a todo o instante. São pessoas detestáveis a tentar superar outras pessoas detestáveis. O que não é incompatível com o bom cinema, dependendo da execução. Ora, o método utilizado por Blakeson para instigar a narrativa resume-se ao aprofundamento das razões mesquinhas do empreendimento de Marla, o que acaba por ser em vão. Não há personagens com nuances suficientes para dramatizar de forma eficiente a história. O resultado são duas horas de filme que falham em estabelecer contacto emocional com quem quer que seja.

Além do mais, à medida que o filme vai avançando, também a sua pertinência cai a pique. Isto é, transita de uma exploração interessante de um tema urgente para um thriller genérico, com tendências de “Missão Impossível“, que desafiam a suspensão da descrença. Compro a ideia de que Marla vence com suavidade batalhas verbais perante a autoridade. Mais difícil é de crer que as suas habilidades de combate e espionagem estejam calibradas no ponto demonstrado, independentemente do cycling que faça. Para não falar da capacidade de suster a respiração por tempos indeterminados. É onde os limites são ultrapassados.
O que faz questionar os verdadeiros motivos da obra. Será um apontar o dedo ao sonho americano? Um olhar cerrado à maneabilidade das leis contra o cidadão comum? Uma peça de entretenimento com uma protagonista a roçar o ‘super-heroísmo’? É interpretativo, mas pouco claro. Uma mescla de ideias que brotam de um ato para o outro, para serem abandonadas no seguinte. Facto que revela a principal fragilidade de “I Care a Lot” – alguma falta de foco.
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