Na estante de livros, um porta-retratos especial: a escritora Anna Maria Martins e eu, sorridentes, numa noite de festa, na Academia Paulista de Letras.
Gostava de observar Anna Maria: a discrição elegante; a firmeza nos atos e palavras contidas, mas certeiras; a dedicação à Literatura, fosse naquela Casa de Letras, nos lançamentos de livros (acompanhava de perto a cena literária, descobrindo autores novos de todos os quadrantes do Brasil, que ela incentivava); o seu papel fundamental no nosso Clube Leitura, onde ela abria e fechava os trabalhos, pontuando cada fala com solenidade e, ao mesmo tempo, com o jeito simples de quem conversa numa sala de visitas. Já passando dos inacreditáveis noventa anos, não aparentava essa idade, tal era a sua energia e brilho nos olhos. Uma mulher para se admirar, para se ter como modelo e inspiração de vida.
Depois de tantos anos de convivência e trabalho conjunto, pois, participamos de projetos como as palestras nas escolas de São Paulo e o ciclo de Memória da Literatura Paulista na Academia, ocasião em que ela me convidou para discorrer sobre as romancistas Maria de Lourdes Teixeira (1907-1989) e Stella Carr (1932-2008). Quando lhe disse um dia que voltaria à minha terra natal, Mato Grosso do Sul, ela me olhou fixamente e disse: “_ Só desejo que você seja feliz, aonde estiver.”
Continuamos a telefonar-nos, trocar cartas e ainda nos encontramos virtualmente, em reuniões pelo recurso Zoom, do nosso Clube. Ela assessorada pela sua neta Clara. Notei a sua voz entrecortada e os cabelos brancos. Os seus cabelos que eram sempre tratados e impecáveis de dama paulistana.
Na mesma estante, está o seu livro de narrativas curtas, “Katmandu“, reeditado na Coleção Melhores Contos, da Global, de 2011, um clássico da nossa literatura. O crítico Nilo Scalzo comentou que “um dos papéis da arte é ir além da camada aparente das coisas e buscar exprimir a verdade que se esconde atrás dela” e que “Anna Maria é contista de nosso tempo“, cheia de um “sentimento de inquietação“, em contos que causam espanto e estranheza. Anna expõe as limitações do ser humano com senso de humor, ironia, sem nunca esbarrar na grosseria ou no panfletarismo.

Os temas são fortes: em “A Herança”, o mundo sombrio e absurdo do carrasco com mania da perseguição, preso ao torturado para sempre, simbolizado por uma massa sangrenta surreal; em “Contra-Ataque”, a necessidade de um manual de guerrilha urbana, acuados que estamos pela violência; em “Fundo da Gaveta”, uma crítica afiada ao mundo do livro, das pressões no relacionamento com o editor; o martírio da personagem Jó na fila do correio, no supermercado, as suas agruras na cidade que o esmaga, que o leva à exaustão;
“O Piloto” sobre o extermínio de duzentas mil pessoas pela bomba atómica, o drama de consciência do piloto que apertou o fatídico botão; “Velhice” sobre o cansaço, a prostração, o mal-estar, a viuvez; em “Jantar em Fazenda”, a escritora deslocada numa fazenda, entre gente fútil.
Cenários que refletem a sua experiência nas fazendas e casarões coloniais de Santos, ela que era descendente de famílias tradicionais como a dos Coelho (do seu pai), dos Andrada (do patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva) e Amaral (da maior pintora brasileira do século XX, Tarsila do Amaral). Anna Maria declara que a sua preocupação como contista, o seu compromisso, era com o ser humano. O homem, as suas angústias, a sua capacidade, as suas limitações. O homem prensado por forças sociais, económicas, morais e psicológicas. O homem e o seu estar no mundo.

“Katmandu” é dedicado à memória do seu marido Luís Martins (1907-1981), o jornalista, cronista e crítico de arte que publicou durante mais de 30 anos no jornal “O Estado de São Paulo”. Escreveu sobre a receção da arte moderna em São Paulo. Foi defensor pioneiro da criação do Museu de Arte Moderna, o MAM, de São Paulo.
Luís Martins, antes de se casar com Anna Maria (1924-2020), viveu uma longa e tumultuada relação amorosa com Tarsila Amaral (1886-1973). Tinha 26 anos quando chegou do Rio de Janeiro a São Paulo, logo depois do seu livro “Lapa” (1936), sobre aquele famoso bairro boémio, ter sido apreendido pela polícia de Getúlio Vargas. Tarsila, exótica, deslumbrante, inteligente e culta, estava com 47 anos. Havia se separado de Oswald de Andrade, com o qual levara uma vida frenética, de viagens e eventos artísticos, até à traição dele com Patrícia Galvão, a Pagu.
Luís e Tarsila ficaram juntos por quase vinte anos. Foi na fazenda Santa Teresa do Alto, administrada por Tarsila, onde ela pintava os seus quadros, que Luís conheceu Anna Maria, filha de uma prima de Tarsila. Anna Maria assinava na época Anna Maria Coelho de Freitas, Coelho do pai e Freitas do marido, morto em 1944. Anna estava com 27 anos, viúva, com um filho de sete anos. Luís e Anna Maria apaixonam-se o que provocou celeuma no clã Amaral. Um escândalo com tons de tragédia. Verdadeiro rompimento na família.
Luís, consumido pela culpa, não sabia como terminar com Tarsila e cogitou em suicídio. Enfim, Anna Maria e Luís venceram os obstáculos e preconceitos e casaram-se. Ela passa a assinar simplesmente Anna Maria Martins. Uma história digna de novela, que foi contada na minissérie da TV Globo, “Um Só Coração” (2004), escrita por Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira. A minissérie, rica em reconstituições, foi uma homenagem aos 450 anos de São Paulo.
A protagonista era Yolanda Penteado, princesinha do café, bela e determinada. A minissérie reuniu personagens reais e fictícios, entre eles, Alberto Dummont, o Pai da Aviação; Assis Chateaubriand e o seu império de comunicação; os poetas Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia; as pintoras Anita Malfatti e Tarsila do Amaral. Numa das tramas paralelas, aparece o romance entre Luís Martins e Anna Maria.
Ana Luísa Martins (1953), redatora, editora e tradutora, filha do casal, escreveu o livro “Aí vai meu coração“. Conta como nos anos 50, ela, uma menina, remexendo as gavetas do escritório, descobriu um segredo de família: que o seu pai, antes de casar com a sua mãe, vivera com outra mulher e que essa mulher era a parente Tarsila do Amaral. Muitos anos depois, Ana Luísa convenceu a mãe a permitir que ela publicasse um livro de cartas de Tarsila e Anna Maria a Luís.
Preencheu lacunas com depoimentos pessoais, com crónicas e poemas que Luís Martins escrevera nessa época. Mais tarde, Ana Luísa, juntamente com José Armando Pereira da Silva, organizou também o livro “Luís Martins: um cronista de Arte em São Paulo nos anos 40“, reunindo o melhor da produção do seu pai.
“Aí vai meu coração” é um livro corajoso, com páginas coloridas por palavras, sentimentos e perfumes de um tempo de sofrida paixão. A escritora Lygia Fagundes Telles (1923) parabenizou Anna Maria e Ana Luísa pela decisão difícil de publicar essas cartas íntimas, um verdadeiro tesouro para futuras gerações.

Numa das paredes do apartamento da rua Óscar Freire, onde Anna Maria viveu até aos seus últimos dias, um perfil exato de Luís Martins traçado por Tarsila, é outra relíquia guardada daquele tempo de arte e amores.
Da gaveta da minha escrivaninha, retiro um envelope com o selo da Academia Paulista de Letras, a vetusta sede do Largo do Arouche. É de 2018. Anna respondeu-me, com a sua letra firme, após a leitura dos livros que lhe enviei: “Leio com prazer intelectual e emotivo suas palavras, sempre bem escolhidas e estruturadas com pertinência. Nós, seus amigos paulistas, sentimos sua falta em nossos encontros culturais ou não. Saudade e um abraço afetuoso, de Anna Maria.“
Sim, saudade e gratidão eternas, Anna Maria.
Se queres que OBarrete continue ao mais alto nível e evolua para algo ainda maior, é a tua vez de poder participar com o pouco que seja. Clica aqui e junta-te à família!
foi a mulher mais digna que a conheci pois trabalho era suas pílulas de energia