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“Raimundo Silva tem por aí alguns conhecidos que uma vez por outra lhe telefonam, e já sucedeu que tal ou tal mulheres sentiam ou fingiam uma necessidade de falar-lhe e ouvi-lo, mas esses são casos do passado que no passado ocorreram e no passado se deixaram ficar, vozes que se dele viessem agora seriam como sobrenaturalidades do outro mundo.”


“História do Cerco de Lisboa”

“História do Cerco de Lisboa”, romance de José Saramago. Único Nobel de Literatura em língua portuguesa, Saramago é um escritor intelectualizado, autor de obras primas tais como “Levantado do Chão“, “Memorial do Convento“, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo“, “Caim“, “A Viagem do Elefante“, “As Intermitências da Morte“, “O Conto da Ilha Desconhecida“, “Claraboia“, “Ensaio Sobre a Cegueira“, entre outros. E não fazia questão nenhuma de esconder sua erudição.

Característica da sua escrita são os parágrafos infindáveis e a pontuação não usual, e na trama os diálogos por vezes encontram-se na mesma frase. É necessária atenção redobrada para acompanhar o enredo e, vez ou outra, retornava à passagem para pegar o ritmo. Essa singularidade transformou-se no seu carimbo pessoal. Confuso? Um pouco. Mas fora esses detalhes, o sujeito sabe contar bem uma história.

Neste “História do Cerco de Lisboa” (Editora Globo, 1989, 319 p.), ele narra a vida de um corretor gramatical de uma editora, Raimundo Silva, que, de forma premeditada, acrescenta uma partícula (não) a um texto histórico, “informando” que os cruzados não ajudaram os portugueses a conquistar Lisboa e, que a partir daí, depois de comprovada a sua má-fé, é vigiado pela supervisora dos revisores e daí engata um romance com a secretária Maria Sara que faz o pobre diabo revisor ter “vida nesta vida”. O interessante na obra é a história dentro da história, pois várias passagens do livro do personagem são transcritas e isso remete à própria formação de Portugal, com o Rei D. Afonso Henriques, no século XII.

José Saramago

O livro traz os bastidores das editoras, afinal, os sacrossantos livros que saem dessas “maternidades” foram compostos por pessoas de carne e osso, com as suas vicissitudes. Eis a passagem: “Raimundo Silva está acostumado, não toma muito a peito as impertinências do Costa, más-criações sem maldade, coitado do Costa, que não para de falar da Produção.

A Produção é que se trama sempre, diz ele, sim senhor, os autores, os tradutores, os revisores, os capistas, mas se não fosse cá a Produçãozinha, eu sempre queria ver de que é que lhes adiantava a sapiência, uma editora é como uma equipa de futebol, muito floreado lá na frente, muito passe, muito drible, muito jogo de cabeça, mas se o guarda-redes for daqueles paralíticos ou reumáticos vai-se tudo quanto Marta fiou, adeus campeonato, e o Costa sintetiza, algébrico desta vez, A Produção está para a editora como o guarda-redes está para a equipa. O Costa tem razão.

E na sequência, um cardápio lusitano: “Chegando a hora do almoço, Raimundo Silva fará uma omeleta de três ovos com chouriço, excesso dietético que o seu fígado ainda aguenta. Com um prato de sopa, uma laranja, um copo de vinho, um café para rematar, de mais não necessita quem tem esta vida sedentária. Lavou cuidadosamente a louça, gasta mais água e detergente do que o preciso, enxugou-a, arrumou-a no armário da cozinha, é um homem ordenado, um revisor no absoluto sentido da palavra“.

Para observarem o lirismo nas construções das frases de Saramago, cito: “Está demonstrado, portanto, que o revisor errou, que se não errou confundiu, que se não confundiu imaginou, mas venha atirar-lhe a primeira pedra aquele que não tenha errado, confundido ou imaginado nunca. Errar, disse-o quem sabia, é próprio do homem, o que significa, se não é erro tomar as palavras à letra, que não seria verdadeiro homem aquele que não errasse.

Lendo “História do Cerco de Lisboa”, deu para reconhecer cenários e lugares e entender o que significa uma cidade quase secular, que mantém até aos dias atuais muito da sua história. Desculpem-me também o meu olhar de viajante, mas deu para perceber alguns hábitos dos portugueses, que na sequência das suas rotinas pouco se dão ao novo, afinal, “se lá pela tarde eu tenho o hábito de ir à tasca pedir um café, comer um pastel de Belém, folhear um jornal impresso e paquerar a atendente, que assim seja”. Proporcionou-me saudades da capital de Portugal!

Espero que o editor do Barrete Diogo Passos não insira um “Não” neste meu texto, imagina se ele propositadamente indica que José Saramago “não” é um escritor intelectualizado.

Marcelo Pereira Rodrigues

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