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Em janeiro de 2015, quando Paris foi sacudida por uma série de atentados, notadamente contra os editores do jornal satírico Charlie Hebdo, a editora Flammarion ponderou se seria adequado adiar a publicação do romance de Michel Houellebecq, “Submissão”. No Barrete, já tratei de um outro livro do autor, “Serotonina“. Mas, do que se trata “Submissão”? Publicado no Brasil pela Alfaguara, com as suas 253 páginas, o romance narra a vida medíocre do professor universitário de Letras François, especialista em J. K. Huysmans (1848-1907) e que, aos 44 anos é indiferente às questões políticas do país, no caso a França, e da cidade em que vive, Paris.

Solteirão convicto, mantém relações esporádicas com as suas alunas e colegas de universidade, é distante dos pais e só é avisado dias mais tarde acerca do falecimento destes, tendo a mãe sido enterrada como indigente. Tudo segue nesta rotina até que uma eleição presidencial vem desestabilizar a vida de todos os franceses. No ano de 2022, a Fraternidade Muçulmana vai para o segundo turno e vence as eleições.

Liderada pelo moderado e carismático Mohammed Ben Abbes, as coisas tendem a se adequarem, exceção feita ao sistema de ensino do país, que passará a ter o financiamento saudita dos donos do petróleo e, aos poucos, vai ocorrendo uma islamização nas universidades. Aposentadorias compulsórias são propostas e François é uma destas vítimas, estranhando o facto de que a antecipação na sua aposentadoria não significaria a perda de um euro sequer, sendo que 3.472 euros era o benefício fixado.

J.K. Huysmans

Agora entendemos o temor da Flammarion acerca do livro. Bom humor não parece ser característica dos fundamentalistas que tentam assassinar e desconhecem os princípios básicos da liberdade de expressão (o professor Samuel Paty que o diga). No romance de Houellebecq, as coisas parecem assentar-se e apenas alguns costumes muçulmanos são agora toleráveis, como o facto de um homem poder ter mais do que uma esposa, sendo algumas adolescentes que alguns anos antes brincavam com bonecas ainda.

No plano geopolítico, comentaristas sugerem a possibilidade de uma expansão territorial, nos moldes do Império Romano e, pouco a pouco, nações africanas tais como Marrocos, Argélia e Tunísia podem compor o quadro europeu. François encontra-se com um agora demitido agente de segurança do governo francês, com a sua esposa professora universitária (também aposentada) e que passa o tempo a praticar os seus dotes culinários. A narrativa, abordando essa distopia, não deixa de nos encantar pela comicidade. Uma das marcas pessoais de Houellebecq é a escrita enxuta, direta e sem sentimentalismos. Um estilo cru que é percebido no trecho a seguir:

Saí da frente da tela do computador, dei uns passos até a janela; uma nuvem lenticular isolada, de flancos tingidos de laranja pelo sol se pondo, pairava muito alta acima do estádio Charléty, tão imóvel, tão indiferente quanto uma nave espacial intergaláctica. Eu sentia apenas uma dor surda, amortecida, mas suficiente para me impedir de pensar com clareza: tudo o que eu via era que mais uma vez estava só, com um desejo de viver cada vez menor, e com inúmeros aborrecimentos em perspetiva. Extremamente simples em si mesma, a minha demissão da universidade criara um vasto canteiro de trabalho junto à previdência social, e também junto ao meu seguro de saúde complementar, que eu não sentia coragem de enfrentar.

No entanto, eu precisava; embora muito confortável, em nenhuma hipótese a minha aposentadoria me possibilitava enfrentar uma doença grave; mas ela permitia, pelo menos, que eu apelasse de novo às minhas escorts. No fundo, não tinha a menor vontade de fazer isso, e a obscura noção kantiana de ‘dever para consigo mesmo’ pairava no meu espírito quando resolvi percorrer as telas do meu site habitual de encontros.

Optei, enfim, por um anúncio publicado por duas moças: Rachida, uma marroquina de vinte e dois anos, e Luisa, uma espanhola de vinte e quatro anos, propunham ‘deixar-se enfeitiçar por uma dupla danadinha e endiabrada’. Era caro, evidentemente; mas as circunstâncias pareciam justificar uma despesa um pouco excecional; marcamos o encontro para aquela mesma noite.

No início, as coisas aconteceram como de praxe, ou seja, razoavelmente bem: elas alugavam um lindo studio perto da place Monge, tinham queimado incenso e posto música suave do género canto de baleias, penetrei e enrabei as duas, uma depois da outra, sem esforço e sem prazer. Foi só meia hora depois, quando metia em Luisa com ela de quatro, que algo novo se produziu: Rachida me deu um beijo e depois, com um sorrisinho, passou para trás de mim; primeiro pôs a mão em minha bunda, depois aproximou o rosto e começou a lamber os meus colhões.

Aos poucos senti renascer em mim, com um deslumbramento crescente, os arrepios esquecidos do prazer. Talvez o e-mail de Myriam, o facto de que de certa forma ela me abandonasse oficialmente, tivesse liberado algo em mim, não sei. Cheio de gratidão, eu me virei, arranquei a camisinha e me ofereci à boca de Rachida. Dois minutos depois gozei entre seus lábios; ela lambeu meticulosamente as últimas gotas enquanto eu acariciava seus cabelos.

Ao sair, insisti em oferecer a cada uma delas uma gorjeta de cem euros; as minhas conclusões negativas talvez fossem prematuras, as duas moças davam uma demonstração que se somava à surpreendente mutação ocorrida, tardiamente, na vida do meu pai; e talvez, se eu revisse Rachida com frequência, um sentimento amoroso acabasse nascendo entre nós, nada permitia excluí-lo de todo“.

Michel Houellebecq

O interessante no livro é a amizade que François faz com o seu objeto de tese, o distante J. K. Huysmans. Por vezes sinto isso também: autores clássicos fazem-me melhor companhia do que pessoas de carne e osso.

Na parte final do livro, com o encontro de François com o seu colega Robert Rediger, a história fica mais interessante. É que Rediger, convertido ao Islão, discorre sobre a religião aludindo às dimensões do Universo, dos bilhões de galáxias e estrelas e relaciona esse mistério com Deus, e a prosa toda é bastante comovente. Publica um pequeno livro aludindo às premissas do islamismo e tenta convencer o amigo a se converter também. Dá verdadeiras aulas sobre a derrocada dos valores ocidentais da Europa (comprovável na Igreja Apostólica Romana que, numa tentativa de ser mais palatável e tolerante, cogita admitir o casamento gay, por exemplo).

Alude ao crescente individualismo, que acarretaria numa dissolução do núcleo familiar e chega à conclusão de que uma doutrina mais autoritária evitaria isso. Lado outro, percebemos na sociedade francesa uma adaptação, ainda para mais que Ben Abbes é bastante hábil em criar as suas alianças. Revela-se no final uma extensão desses domínios, uma vez que agora a Bélgica também conta com um governo muçulmano e em outros importantes países europeus essas alianças já são visíveis.

Irá François se converter ao islamismo e retomará o seu emprego na Sorbonne? Só lendo o livro para saberem. Uma obra fantástica e bastante reflexiva.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 4 out of 4.

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