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Porque A Arte Somos Nós

A personalidade deste filme é deveras vincada. As suas subtilezas narrativas carregam consigo a certeza de que a experiência vai criando sinfonias no espectador. “Scarlet Street” (“Almas Perversas” em português), uma produção de 1945, mostra que é possível fazer bom cinema com simplicidade. Arranca com um homem, Christopher Cross (Edward G. Robinson), na sua crise de meia-idade, que se aproxima de uma mulher mais nova, Katherine ‘Kitty’ March (Joan Bennett). O noivo dela, Johnny Prince (Dan Duryea), convence-a a enganar Christopher de forma a que ambos consigam um pouco da sua suposta fortuna.

Chris tem uma paixão pela pintura e alimenta esse sentimento como hobbie. Num trabalho com algum prestígio como bancário, ele tem a confiança total do seu patrão e um estatuto de pessoa íntegra dentro da comunidade de trabalho. Numa pequena festa entre colegas, Chris recebe uma prenda do seu chefe, um relógio de alta gama. No desfecho do evento, este repara que o seu patrão se vai encontrar com uma bela rapariga (bem mais jovem que ele), criando nele um sentimento um tanto ou quanto nostálgico, visto que o seu casamento é infeliz e no qual não tem apoio para seguir com o seu sonho em ser pintor.

Ao ir para casa, nessa mesma noite, com muita chuva, acaba por encontrar uma rapariga, Kitty, a ser atacada e alegadamente assaltada por um sujeito. Chris salva a rapariga, também ela bem mais jovem que ele, e leva-a a casa. A partir daí, ele começa a ficar obcecado por ela, tentando compensar de certa forma a falta de amor que tinha em casa. No entanto, Kitty vai, supostamente, dando indicações a Chris em também estar interessada num envolvimento romântico; no entanto, não passa de uma farsa e de um jogo que ela criou juntamente com o seu namorado, Johnny.

Christopher Cross (Edward G. Robinson) e Katherine ‘Kitty’ March (Joan Bennett)

A beleza contemplativa desta obra está, sobretudo, nos aspetos secundários em que toca e que servem completamente o filme. Desde o facto do próprio ato de amar ser uma forma por vezes cega de (nos) sentirmos, como explora a arte da pintura, mas que premeia mais com a emoção do que com a razão. Nesse aspeto, o argumento de Dudley Nichols, adaptado do romance de Georges de la Fouchardière e de André Mouëzy-Éon, “La Chienne“, faz sobressair uma vertente fortíssima de ambivalência narrativa, totalmente acertada como um todo.

Além disso, encontra o seu norte cinematográfico, naturalmente, na performance de Edward Robinson, que dá corpo e alma a uma personagem que pode perfeitamente representar uma fatia de alguns casamentos desgastados e sem sentido que tendem a acontecer. Mas, vai muito mais para além deste jogo de mentiras e de cegueira do amor, conseguindo articular muito bem os três atos, sem nunca deixar de explorar com o devido cuidado aquilo que é mostrado e não dito.

Posteriormente, Kitty tenta aproveitar-se dos quadros de Chris para fazer algum dinheiro nas suas costas, até que um dia um dos mais mediáticos críticos da atualidade se depara com as obras e fica encantado. Nasce, portanto, uma nova pintura, uma farsa completa que Chris perdoa por amor. No entanto, mais tarde este percebe o envolvimento romântico entre Kitty e Johnny e aí as coisas mudam ligeiramente de figura.

Esta produção conta com uma banda sonora bastante adequada em tom ao ritmo que vai transparecendo, numa história toda ela conduzida por um guião riquíssimo, que contempla suspense, thriller, romance e crime. A dado momento, Chris até se subjuga a roubar algum dinheiro do cofre que supervisiona para dar a Kitty, comprometendo totalmente a sua reputação entre os colegas e até o próprio emprego.

Dan Duryea (Johnny Prince) e Katherine ‘Kitty’ March (Joan Bennett)

Neste filme noir realizado por Fritz Lang, que termina da forma mais certeira possível, poucos são os defeitos a apontar. Trata-se de uma produção que enche bastante a alma do auditório e desperta a curiosidade dos mais exigentes, no entanto, tem alturas um pouco baixas em ritmo que afetam um pouco a dinâmica narrativa, sem nunca comprometer o seu belíssimo argumento.

Por vezes o amor bate-nos à porta sem nós darmos conta, mas a verdade é que frequentemente fica difícil distinguir se, de facto, esse sentimento não nasce como ilusão de uma paixão preenchida por vazios e carecida de significado mais intrínseco, ao invés de uma conexão única. Por outro lado, único é o sentimento que fica neste filme a preto e branco em que a cegueira pode ter um papel importante, mas não deixa de nos mostrar a realidade das coisas e, acima de tudo, uma possível audácia e criatividade que a acompanham.

Por um cinema feliz.

Tiago Ferreira

Rating: 3.5 out of 4.

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