A relação que a morte tem com o terror é a mesma que a carne tem com a unha. São inseparáveis. Tal como acontece neste “Relic”. Não há como não sentir o peso da condição humana quando estamos diante dos últimos suspiros de um ente querido, assunto que tem sido explorado desde sempre pelo canon da cinematografia de horror. Mais recentemente, “The Dark and the Wicked” (2020) surpreendeu pela forma maliciosa como abordou o tema, mas foi “Relic”, a estreia da cineasta Natalie Erika James, que o elevou para terrenos emocionais e assombrosos.
Natalie, que assina também o argumento em parceria com Christian White, começa o drama com um breve prólogo que estabelece a atmosfera pesadelar da película: a noite faz-se sentir. A água da banheira escorre sem fim do primeiro andar até ao rés-do-chão de uma velha casa.
Vemos voltada uma idosa despida. Não parece estar em si. Finda a cena, Kay (Emily Mortimer) vem visitar Edna (Robyn Nevin), a sua mãe negligenciada. Sam (Bella Heathcote), a sua filha, acompanha a mãe na viagem, mas ambas dão de caras com uma casa poeirenta, vazia e ruidosa. Edna está desaparecida. Uma busca é posta em ação, mas o sumiço é sol de pouca dura. Quando retoma a casa, Edna não parece recordar-se de onde esteve, um dos vários indicativos de que sofre de uma terrível doença – demência.

A constatação da desordem mental da matriarca marca o ponto de partida da inquietação de Kay. Terá de mudar-se lá para casa? Ou dadas as circunstâncias a melhor resposta será um lar de idosos? – Muito contra vontade de Edna. “Não é assim que funciona? A tua mãe mudou-te as fraldas e agora mudas tu as dela?“, comenta Sam, num misto de perspicácia e inocência.
Longe de conhecer a angustia de ver envelhecer e de estar na presença de alguém que já não se reconhece. Pois tal como Jennifer Kent explora na sua obra-prima, “O Senhor Babadook” (2014), um duro processo de mágoa pós-morte, em “Relic”, Natalie medita sobre um luto antecipado a uma partida inevitável. O temor que é ver a pessoa estimada ceder aos poucos à sua mortalidade.
A desconstrução do tema é executada quer por meios visuais como sonoros, sendo este último a sua maior valência. Mais do que ser visto, “Relic” é um filme para ser ouvido. As paredes da casa perturbada rangem e chiam em ruídos ásperos, como se tivesse amaldiçoada. Sem rasto de banda sonora, o jogo entre o design do som e o silêncio absoluto contrastam num efeito de suspense vibrante. Por outro lado, a constância das infiltrações nas paredes são sintomas reminiscentes aos do extraordinário “Águas Passadas” (2002), de Hideo Nakata, que por sinal reflete também um pendor tão comovente como a longa-metragem em análise.

Numa tentativa de se aproximar da sua avó e estabelecer um verdadeiro vínculo, Sam tornasse, a certo ponto, prisioneira dos tumultuosos corredores da tão vil doença. Esta incapacidade de aproximação para com Edna, devido à sua instabilidade mental, por muito horrífica que seja, não se assemelha à realização que tem perto dos créditos finais.
Depois de testemunhar um ato de amor e compaixão, a jovem deparasse com indícios que refletem o mote do filme. O facto de este horror ser um problema geracional devastador – um ciclo inexorável que nos coloca todos dentro do mesmo barco. Ou como a cineasta prefere, na mesma casa.
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