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Porque A Arte Somos Nós

“— Eis a minha opinião – declarou, sentencioso, o diretor-geral adjunto. — Passam-se aqui muitas coisas lamentáveis e, aliás, não é de hoje. Muito eu teria a dizer sobre erros cometidos nos dois últimos anos, mas vou me ater aos acontecimentos atuais. Uma pessoa nesta empresa zomba do mundo. Escreve um texto estúpido, imprime-o e – o que ainda é mais extraordinário – encontra meio de distribuir à noite, em todos os escritórios, mais de mil exemplares, nas barbas dos guardas!

Que fazem esses guardas noturnos? Dormem? Devemos suspender imediatamente o contrato com a companhia de vigilância e reclamar compensações. Depois, esse indivíduo imagina um cenário macabro, aproveitando a coincidência entre o seu projeto de semear a inquietação junto a nós e a morte do nosso auxiliar.”


“O Imprecador”

O romance “O Imprecador” (Círculo do Livro, 291 p.), do francês René-Victor Pilhes, foi publicado em 1974. Quando foi traduzido para português, os editores resolveram manter o título, apesar de a palavra não constar no nosso Dicionário. Mas sabemos o que é uma imprecação, uma torrente de ofensas e ‘xingamentos’ proferidos ou publicadas por alguém. Imprecador então nada mais é do que o sujeito que se presta a essas práticas vis. Ponto pacífico, vamos ao livro.

Tudo se passa num dos subúrbios de Paris, onde uma multinacional no ramo de maquinários e géneros alimentícios, a Rosserys & Mitchell-France, com cerca de 1200 funcionários, sofre uma campanha interna de calúnia e difamação, tendo sido iniciada com uma subtil ironia e o personagem principal que irá entrar de cabeça nessa investigação é o Diretor de Relações Públicas.

O dia não se anuncia bom: um Diretor de Marketing perde a vida num acidente automobilístico (será que ele estava esgotado ao retornar à casa após uma exaustiva jornada?) e é o RP (Relações Públicas) que necessita fazer cumprir protocolos e cuidar do funeral do dileto funcionário. Assim sendo, conhece a esposa do finado, aproxima-se mais do Diretor-Geral para juntos cuidarem das tarefas (a do funeral e a da investigação acerca de quem era o imprecador que estava a atuar contra a empresa, em irritantes rolinhos de papel com fitas verdes e pretas distribuídos na surdina para a quase maioria dos funcionários, enfim, a tarefa será árdua e misteriosa).

À medida que a narrativa vai fluindo, somos apresentados a tipos profissionais medíocres, mesmo os dos altos escalões. Nas suas funções executivas, abusam das teorias e parece que perderam a prática e a humildade no convívio humano. Percebi um fundo socialista no autor, mesmo valendo-se de personagens para apresentar a história. São vários os maneirismos industriais e corporativos, apresentando condutas ineficientes e contraditórias. Até que chegamos à conclusão de que todos da cúpula são suspeitos de serem o imprecador.

Uma descrição fez-me investigar e estudar sobre um dos lugares mais visitados na Cidade Luz: o cemitério Père-Lachaise, e fiquei impressionado com a sua rica história cultural e verdadeiro abrigo de grandes figuras da Humanidade, como Pedro Abelardo e Heloísa, Oscar Wilde, Jim Morrison, Édith Piaf, Balzac, Chopin, e se fosse enumerar aqui a lista ficaria imensa. É que a multinacional fica quase ao lado deste ponto turístico e a trama aponta para a conexão entre um dos túmulos, com coloração verde e preta, uma passagem secreta que permitirá uma viagem para as famosas catacumbas parisienses e pode ser que um destes pontos desemboque diretamente dentro da empresa.

Pois, para piorar um pouco mais as coisas, os diretores da empresa agora veem-se às voltas com rachaduras numa das garagens. Enfim, tudo leva a crer que este imprecador não está para brincadeiras, pois todas as pistas apontam para essa ligação.

René-Victor Pilhes

Enquanto lemos, a nossa mente vai investigando o possível suspeito, mas há muitas reviravoltas e tudo o que sobressai é que o nosso personagem principal, o RP, está esgotado com tantas atribuições. Tanto é que, em algumas passagens, uma voz do convalescente que está no hospital é que antecipa o final do enredo, mas claro, teremos que ler o final para entendermos os motivos dessa estadia na clínica.

O livro aponta, entrelinhas, aspetos geopolíticos de relevo, quando os diretores da multinacional são suspeitos de terem ajudado no golpe de Estado do Chile, no governo socialista de Salvador Allende, que estava contrariando os interesses do capital estrangeiro. Isso escrito em 1974 é revelador e importante, certamente já sabemos que atualmente vivemos na lógica do capital, no propósito que diz mais ou menos o seguinte: pouco importa se é Trump ou Biden quem será o Presidente dos Estados Unidos da América, o essencial é que eles irão comer caladinhos nas mãos dos grandes banqueiros e investidores financeiros.

Segue o nosso fatigado RP investigando as rachaduras e as comunicações apócrifas quando é acusado de ser ele o imprecador. Sai pela tangente, vê-se numa reunião da cúpula para investigarem mais e tudo aquilo se mostra apenas uma barafunda, com direito à cerimonial maçom e tudo roçando o ridículo. O romancista peca por uma característica que quase chegou a comprometer a história: quando os interlocutores dialogam, são extensas as suas falas e todos sabemos que, na vida real, quando pessoas conversam, o natural é uma afirmativa e sentença básica, para que o outro questione e assim sentimos mais verossimilhança na trama.

Diálogos extensos transformam-se em monólogos e devido a isso, tornam-se cansativos e pouco credíveis. Mas vá lá, não é algo que chegue a desabonar o enredo.

Um final surpreendente aguarda-nos e lembrei-me de técnicas narrativas que utilizei em três dos meus romances (“Um Café com Sartre“; “O Filósofo Idiota” e “Corda Sobre o Abismo“) que é uma chacoalhada no leitor, para que ele atravesse uma ponte que o leve ao desconhecido e ao surpreendente. Foi gostoso ter esta mesma sensação e rir com a sacada do autor. Ponto mais que positivo, em contraste à sua técnica de diálogos imensos.

Um livro envolvente, gostoso de se ler e que indico a todos aqueles que queiram viajar por uma boa história. Preparem as vossas lupas, investiguem acerca do imprecador e deleitem-se ao término.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 3 out of 4.

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