“Espantosamente, a paralisia cerebral de Tito, para mim e para a Anna, em momento algum representara um motivo de dor. Espantosamente, a paralisia cerebral de Tito, para mim e para a Anna, em momento algum representara um peso. Aos sete meses, Tito era apenas uma pessoa que amávamos”
Emocionante! Este foi o meu sentimento ao ler e degustar o livro de Diogo Mainardi, publicado pela Record (2012, 150 p.). O autor tem um filho com paralisia cerebral, Tito. Tito foi vítima de um erro médico, num hospital de Veneza. Contando essas e outras passagens do quotidiano, o pai reverbera cada passo do seu filho investigando grandes autores, alguns com casos de paralisia cerebral na família, faz digressões e relaciona o tempo todo o ocorrido com o seu filho com passagens culturais interessantíssimas.
Conhecido pela sua verve irónica e sarcástica, o que para muitos se mostra apenas como agressão gratuita nas suas crónicas da Revista Veja, do Brasil (quando era o mais comentado dos colunistas), o autor hoje é editor da Revista Crusoé e comentarista do programa Manhattan Connection, da Globo News, com comentários sempre oportunos e pertinentes. Foi o primeiro jornalista (mesmo sem sê-lo) que empreendeu graves denúncias ao ex-Presidente da República do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva, que se mostraram acertadas com o tempo, levando o político a ser condenado e preso pela mais importante operação policial do país, a Lava Jato.
Retornando ao livro em questão, sempre percebi no autor uma autoironia impiedosa, sem concessões de nenhuma espécie. Destes que na ausência de um alvo para cuspir, é capaz de cuspir para cima e ser vítima de seu próprio gesto. Autopiedade? Que nada! Diogo Mainardi abusa da ironia ao relatar os tombos de Tito, se mostra um pai zeloso na peregrinação em busca da melhor adaptação à vida de seu primogénito, e é generoso ao nos permitir o convívio (mesmo que indiretamente, lógico) com a sua família.

Esbanjando erudição em várias passagens, mostra-se um profundo conhecedor da história das artes italianas, e relaciona Veneza (que é conhecida por Sereníssima) com Ezra Pound, Shakespeare, Marcel Proust, entre outros. Relaciona o facto de o filho ser um sobrevivente como o quarto filho de Rembrandt, o genial pintor holandês, que após perder três filhos que não chegaram aos dois meses de vida, teve um que vingou. Seu nome? Tito.
Em cada nota que compõe o livro, cada uma corresponde a um passo de Tito, o leitor(a) irá familiarizar-se com o mundinho caseiro de Diogo Mainardi, cito: “Meu Evangelho agora é uma conta de luz“, com introspeção profunda e contas absurdas, como o que equipara o custo de Tito a uma quantidade X de ovos de granja, dentre outras pérolas, cito:
“No processo que movemos contra o hospital de Veneza, tivemos de contabilizar – como os economistas do Terceiro Reich – todo o dinheiro gasto com a paralisia cerebral de Tito. Entre fisioterapia, terapia educacional, fonoaudiologia, equoterapia, assistente de classe, ortopedista, neurologista, anestesista, exames médicos, botox, comunicador, andador, calhas ortopédicas, hospital de Nova Iorque, hospital de Boston e despesas legais, Tito custava, em média, 230 reais por dia. Isso equivalia, em dez anos, a 3.497.916 ovos.“
Magistral, por ser simples e emotivo. Mas não uma emoção barata, pois o que se destila de seus escritos é uma amargura intelectiva bastante profunda, certo não pertencimento a um rebanho de ideais e positividades, enfim, até para relatar casos complicados e sérios Diogo consegue sibilar as suas ideias com um certo esgar no canto da boca. Um livro formidável!
Trecho do livro:
“O maior impedimento para um menino com paralisia cerebral é a impossibilidade de investigar o mundo ao seu redor.
Com o carrinho da Chicco, Tito superou parcialmente esse impedimento.
Ele entrava nos armários e tirava as meias das gavetas. Ele ia à cozinha e puxava o avental da cozinheira. Ele passava sob a mesa de pingue-pongue durante as nossas partidas. Ele ia ao banheiro e espalhava todo o rolo de papel higiénico pelo apartamento.
Tito investigava o mundo. Nós investigávamos Tito investigando o mundo.“