“Heavier Than Heaven (Mais Pesado que o Céu)” é o excecional livro biográfico de Kurt Cobain, escrito pelo experiente Charles R. Cross, um dos mais notáveis críticos musicais de nosso tempo. Nesta biografia publicada pela Editora Globo, com 450 p., no ano de 2001, Cross devassa a vida e obra de Kurt Cobain (1967-1994), líder da melhor banda de grunge rock dos anos 90, os Nirvana. Kurt, herói de si mesmo, proclama que não desejaria chegar aos 30 anos e insistiu numa epopeia destrutiva que culminou com um tiro na cabeça, a 5 de abril de 1994.
Numa vertiginosa carreira, os Nirvana saíram dos guettos de Seattle e alçou voo mundo afora, transformando o cenário pop num mundo de não Deuses. Kurt não tinha a pose de um Bono Vox (U2), não se tinham notícias de exigências suas nos hotéis e camarins e nunca soube lidar com os milhares de dólares que ganhou com o seu trabalho, a ponto de pedir quarenta dólares emprestados a um roadie, já no glamour da carreira.
À medida em que avançamos nas páginas desta obra, verifica-se uma interessante analogia darwiana acerca da evolução. Interessante no caso de Kurt, a involução! Do garoto problemático, hiperativo e com princípio de escoliose (que se agravaria com o passar dos tempos devido ao peso da guitarra), o seu mundo introspetivo meio escatológico, as vadiagens pelas ruas de Aberdeen, sendo mudado a todo tempo de casa em casa, a sua fuga para a música, tocando de graça em barzinhos sujos. As suas primeiras viagens com a banda, atestando o seu lado herói: sem público, sem status, sem dinheiro e o que era pior: sem perspetivas.

No período embrionário dos Nirvana, Kurt conhece um descendente croata de dois metros de altura, o baixista Krist Novoselic, que além de um ‘puta músico’, é um verdadeiro maluco. 1987 é o ano da fundação da banda, com o baterista Aaron Burckhard a completar o grupo. O trio grava o primeiro single Love Buzz (num ótimo baixo de Krist, tipo tan tan tan…).
É nesse período que conhecem o produtor Jack Endino (na época um ilustre desconhecido) e gravam uma demo com 10 canções. Endino era sócio de Jonathan Poneman no minúsculo selo sub-pop. O som é cru, sem muitos efeitos e performático apenas pelo berreiro do seu vocalista. É nesse período que Kurt começa a esmerar-se nas letras e a compor belíssimas melodias.
Em fevereiro de 1989, gravam o disco “Bleach“, com o substancioso orçamento de… 600 dólares! O LP é muito bom, com destaque para as canções Sliver e About a Girl. Eles fazem uma pequena tournée pela Costa Oeste dos Estados Unidos. Vendendo na base do conta-gotas, o trabalho vai se disseminando. O som é genuíno, a performance no palco é orgiástica, mas o público, na maioria das vezes, é indiferente. Não foram poucas as vezes em que os Nirvana tocaram para 12 pessoas. Percorrendo o circuito underground, no entanto, o conjunto começa a ganhar reportagens em fanzines universitários. Depois do EP “Blew” (1989), Kurt & cia. fazem a sua primeira tournée pela Europa. Tocam em Newcastle, no Reino Unido.
Obsessivo, Kurt tinha encasquetado que queria ser um astro do rock. Pouca gente poderia acreditar – até mesmo os colegas da banda – que os Nirvana alcançariam esse patamar. Enfurnado na banda, os meninos concentram-se cada vez mais em horas e horas de ensaios, e mais notadamente Kurt encontra um sentido para a sua trajetória. A sua sólida amizade com Novoselic e um cenário pouco animador. As suas próprias perspetivas em função da sua vida atual, quando era visto como um notável vagabundo, mas sem a dignidade de um Carlitos.
Soma-se a isso a experiência pesada com as drogas, sendo sustentado por uma namorada, Tracy. Paradoxalmente, a curva de ascensão da carreira era a contramão da vida pessoal. A banda passa a chamar a atenção. Kurt iniciará o seu processo autodestrutivo. Na gangorra, o vocalista entregava cassetes demo para rádios universitárias, três horas depois fingia (por telefone) ser outra pessoa e pedia uma certa música de um tal Nirvana. O locutor devia achar pura coincidência! Numa viagem, Kurt ficou parado quase quatro horas, num posto de gasolina, xingando Deus e o mundo, para desespero dos demais integrantes e só se dispôs a ir embora quando ouviu a música a tocar na rádio.

A Droga do Sucesso
Teen Spirit é a marca de um desodorante juvenil nos Estados Unidos. A banda grava Smells Like Teen Spirit (Cheira a Teen Spirit), que foi tocada pela primeira vez ao vivo a 17 de abril de 1991. É nessa época que os Nirvana recebem o mais novo baterista, Dave Grohl, e daí a clássica formação. Um salto vertiginoso: no ano anterior eles haviam assinado com a gravadora Geffen, uma major na indústria fonográfica. Os executivos já apostavam na quilometragem rodada daqueles rapazes e produziram o ótimo “Nevermind“, arrisco-me a dizer o melhor disco da década de 1990.
Produzido pelo fantástico Butch Vig, que controlava um pouco os achismos e manias de Kurt. O clássico Smells Like Teen Spirit puxa o LP. A canção transformou-se num hino, pois casa uma melodia singela aos vocais guturais de Kurt. A seguir as seguintes faixas: In Bloom, Come As You Are, Breed, Lithium, Polly, Territorial Pissings, Drain You, Lounge Act, Stay Away, On A Plain e Something In The Way. Ufa, um disco foda!
Em outubro daquele mesmo ano, os Nirvana apresentam-se em Seattle e o público atônito assiste a quebra dos instrumentos no palco após o bis. Assistam à performance no YouTube: o esmirradinho Kurt berrando e tocando guitarra com as cordas invertidas (ele era canhoto), o gigante Krist com o seu baixo jogado à altura dos joelhos (o que lhe dava a aparência desconjuntada) e a virulência da bateria de Dave.
Aliás, este sofria: sem mais nem menos, Kurt projetava-se para trás, lançando-se no ar, mergulhando nos pratos e machucando-se, o que ocasionava algumas escoriações no baterista também. Uma amiga na plateia comentava: “Nossa, como esse menino (Kurt) fica furioso no palco!” O show de “Nevermind” é apoteótico! O que dava para notar era que os músicos se divertiam, assim como o público.
Galgando o sucesso, o conjunto atropela ícones do rock e desponta em primeiro lugar nas paradas americanas. Agora é oficial: Kurt Cobain é um astro do rock. Embora sem preparo algum para lidar com a fama, a ponto de ter sido despejado de casa por não pagar o aluguel. Em muitas ocasiões, teve que dormir no banco traseiro do seu automóvel, passando frio.
Dessa época duas coisas a ressaltar: a sua união com Courtney Love, da banda Hole (hoje uma respeitada atriz, atuando em filmes como “Larry Flint” (1996) e “Encurralada” (2002)). Eles casam-se a 24 de fevereiro de 1992, numa ilha paradisíaca. Essa união acarreta a preocupação de empresários e amigos, pois Courtney e Kurt eram viciados contumazes de drogas. Relação bomba-relógio, mas que ao longo do tempo se mostrou verdadeira: ela segurou uma barra com o marido.
Outro aspecto interessante diz respeito ao facto de a MTV produzir, divulgar e difundir os vídeos da banda, o que tornaria os Nirvana a galinha dos ovos de ouro da emissora. Para a gravação de Smells Like… Kurt sugeriu que fosse feito num ginásio de um colégio, que tivessem chefes de claques (as pomponetes) e que não houvesse a separação do trio a tocar e os figurantes. O realizador Samuel Bayer conseguiu irritar tanto Kurt quanto os figurantes.
Detalhista, cortava o tempo todo e Kurt continuava berrando e a dança continuava. A expressão de ira de Cobain é real. Após quase 10 horas trancafiados na cobertura do ginásio, os figurantes sugeriram ao produtor que destruíssem o cenário. Bayer topou na hora. E é essa destruição que aparece no final do videoclipe. Fantástico!
O sucesso bateu às portas dos Nirvana, mas não foi bom para a saúde mental de Kurt, que não conseguiu atravessar a fama, sendo um ícone de pés de barro. Mergulhado nas drogas, notadamente em heroína, ele ainda sofria de terríveis dores estomacais. Nesse turbilhão, nasce a sua filhinha Frances, a 18 de agosto daquele ano, um alento para a conturbada vida do casal. Arrastando-se pelos palcos, os Nirvana passam a cancelar concertos.
Rumores pipocam: dissolução da banda, suposição de que Frances já nascera viciada em heroína, brigas intermináveis do casal e uma relação conflituosa dos membros da banda com empresários e com a MTV. Inclusive para esta, Kurt compôs Rape Me (Me Estupre), com o singelo verso: “Me estupre meu amigo / Me estupre novamente / Eu não sou o único“. Dois anos de sucesso ininterrupto e um Kurt grogue pelas dores estomacais, heroína e condutas cada vez mais bizarras.

Nirvana no Brasil
A imagem que me ficou gravada na memória foi assistir, por um telejornal da TV Globo, à chegada dos Nirvana ao Brasil, em 1993. No aeroporto, com um forte esquema de segurança, Kurt não caminha de imediato. Ao contrário, fica parado olhando os fãs com cara de poucos amigos. E mais: um olhar distante, e ele lá com os seu jeans estropiado e o seu ténis Converse All Star.
Hollywood Rock. Frenesi tupiniquim. Abrindo o show, os Engenheiros do Hawaii que são vaiados quando tocam Parabólica. Sonora vaia, pois o público presente no Morumbi, o estádio do São Paulo, somava 110.000 pessoas. O maior público dos Nirvana. É quando observo, pela TV, um fantasmagórico Kurt Cobain que não consegue acertar um acorde, tão chapado que estava. O show foi um lixo! Uma apresentação deplorável, um vocalista arrastando-se e agonizando no palco.
Num gesto impensado, Krist, furioso, arremessa seu baixo e sem querer acerta a cabeça de Kurt que cai desmaiado (?), ou, surpresa, talvez o baque tenha o feito acordar. O baixista entra em desespero, sai do show, mas é obrigado a retornar. Tudo o que os empresários queriam era que a banda aguentasse pelo menos mais quinze minutos, pois poderiam perder o cachê. O show continua e lembro-me que, à época com 19 anos, não havia entendido se aquilo foi um concerto de rock ou um concerto bizarro de péssimo gosto.
No entanto, na semana seguinte, para um concerto no Rio de Janeiro, a banda conseguiu encontrar-se e aí sim foram os Nirvana que estiveram em palco. Surpreenderam pelos covers de Duran Duran, Queen e Kim Wilde. E mais uma vez a doideira de Kurt: de pijama, com os cabelos curtos, durante o show, simula uma masturbação e cospe na câmara da TV Globo.
Em setembro daquele ano, lançam “In Utero“, sendo que este disco causou uma grande controvérsia entre o produtor Steven Albini e o grupo. O produtor acusou a banda de “limar” demais as músicas, dando uma guinada mais pop para o trabalho. “In Utero” teria o sugestivo título de “I Hate Myself And I Wanna Die” (Eu me odeio e quero morrer). No disco, a obra prima Heart-Shaped Box.
Em 13 de novembro daquele ano, a trupe grava “MTV Unplugged In New York“.
Agonia e Morte
O jornalista Charles R. Cross desnuda o ambiente taciturno e mórbido da vida de Kurt Cobain e da sua família. Courtney Love já se havia acostumado a ressuscitar o marido após as overdoses. Mas a 5 de abril de 1994 foi fatal! Não somente a heroína em excesso, mas para garantir o serviço Kurt carregou uma espingarda e explodiu “os miolos”. Com drama e tudo o mais, deixou uma carta de despedida. Aos 27 anos, ele juntara-se ao “Clube dos Estúpidos” (na opinião triste de sua mãe, Wendy). É que por infeliz coincidência, Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison haviam morrido com esta mesma idade.
O biógrafo tem um mérito e tanto: mesmo sem saber, deu a Kurt Cobain o merecido tratamento de anti-herói. Vai-se o artista, fica-se a obra, cheirando a espírito juvenil.
Algumas Frases Loucas de Kurt Cobain:
“Somos todos iguais, apenas moscas num monte de merda“;
“Distribuam lobotomias / para salvar as pequenas famílias“;
“Faz meses que não me masturbo porque perdi a imaginação. Fecho os olhos e vejo o meu pai, garotinhas, pastores alemães, comentaristas de notícias de TV, mas nenhuma gatinha nua voluptuosa fazendo beicinho e estremecendo em êxtase. Vejo lagartos e golfinhos“;
“Amadurecer, para mim, é pular fora. Espero morrer antes de me transformar num Pete Townshend“;
“Um grande ‘fodam-se’ para vocês que se atrevem a afirmar que sou ingénuo e estúpido a ponto de permitir que se aproveitem de mim e me manipulem“;
“Em Aberdeen, eu odiava os meus melhores amigos com paixão, porque eles eram idiotas“;
“Nossos fãs são idiotas“.