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Porque A Arte Somos Nós

Certos escritores vieram ao mundo para incomodar. Philip Roth (1933-2018) é um destes. Filho de uma família judia de Nova Iorque, acompanhou de perto o período pós-Segunda Grande Guerra, a Guerra do Vietname e o caso Watergate de Nixon. Contumaz observador, desconfiou do ideal do sonho americano, aquele que ficou caracterizado pela harmonia familiar e, se houvesse também a bonança financeira e retratasse um casal branco republicano, nada mais poderia dar errado. Com olhar ferino e denunciando as mazelas sociais, a hipocrisia e os jogos de cena, escreveu brilhantemente romances tendo como pano de fundo essa biografia dos Estados Unidos da América, com direito a bandeiras hasteadas e tudo o mais.

Assim, quando soube da transposição de um dos seus aclamados romances para o cinema, entusiasmei-me logo de caras. Na Sétima Arte, com a abundância de efeitos especiais e outros apetrechos tecnológicos, com a escalação de estrelas para chamar ao filme, por vezes esquecemo-nos que o roteiro é fundamental, sendo o óbvio de se contar uma excelente história. E se foi adaptado de um livro de Roth, podem assistir sem receio de decepção. Será bom.

Ewan McGregor (Swede Levov) Hannah Nordberg (Merry com 12 anos)

O filme, de 2017, é dirigido por Ewan McGregor e, a ver o excelente ator que é, já ficamos a aguardar coisas boas. Ele também atua ao lado de Jennifer Connelly e Dakota Fanning, neste drama histórico com a duração de uma hora e 48 minutos. Tudo se passa num encontro entre dois senhores que estão numa celebração de colegas na antiga faculdade, sendo que um deles terá que participar no enterro do irmão no dia seguinte. O ator David Strathairn com a sua sisudez característica é um dos interlocutores, dialogando com o irmão de Seymour “Swede” Levov (interpretado por McGregor), o finado.

Eis a história: Seymour, filho de um rico industrial judeu na fabricação de luvas, é um rapaz lindo de olhos azuis que se destaca no basebol universitário (com direito a troféus e medalhas) e que se casa com uma beldade que foi Miss na cidade e dada a riqueza, os acertos e concessões do industrial judeu no tocante à educação dos seus netos, tudo caminha bem. A rapariga, linda loirinha, é gaga e aos poucos observamos os seus pais a tentar fazer tratamentos com a psicóloga.

A menina vai se afeiçoando em demasia ao pai e o diagnóstico da profissional é que a beleza estonteante da mãe chegava a constranger a menina. Todos sabemos que a adolescência é uma fase difícil, mas Merry Levov extrapola um pouco. Militante de movimentos ativistas contra a guerra e defensora do movimento negro, confronta-se com os pais e chega ao extremo de passar da teoria para a prática, produzindo, plantando e detonando uma bomba no correio local. Pronto, o drama está posto.

Jennifer Connelly (Dawn Levov)

A história de Roth incomoda-nos e alerta para fenómenos mais que atuais. Recentemente, soube de abastadas filhas e filhos de europeus que abandonaram os seus confortáveis modos de vida para se alistarem em grupos terroristas como o ISIS, por exemplo. Nos Estados Unidos mesmo, pós 11 de setembro, incomoda saber que compatriotas estão chacinando outras pessoas em escolas, universidades, e auxiliando inimigos externos ao ideal americano de ser e viver. Realmente, é salutar que os presidentes exclamem: “Que Deus salve a América”. Voltando ao filme, este incomoda-nos na degradante busca do pai pela filha, que se auto-pune vivendo como uma abandonada numa área que mais se assemelha a uma lixeira.

O interessante do filme/livro é que ali, naquele sítio, um lugar pior que uma penitenciária, a zona de (des)conforto é garantida. A linda garotinha loirinha, filhinha de papai, agora lobotomizada, é uma terrorista que vitimou quatro pessoas, que vive na surdina, que foi estuprada e que abdicou do banho por conta da sua adesão ao jainismo (religião hindu que prega a não violência) e até para respirar é preciso ter cuidado, para que o sopro do ar não vitime bactérias e seres inferiores. Não tem jeito, o aspecto degradante do ser humano é posto em causa e isso chega a dar náuseas, pela máscara que serve também como tapume para os seus dentes quebrados e sujos.

O resultado do filme é satisfatório. Philip Roth é um excelente contador de histórias e prometo tratar aqui alguns dos seus livros num futuro próximo. Faz-nos pensar acerca dos nossos sonhos de consumo, de lares perfeitos, na busca desenfreada pelo ter em detrimento ao ser e, quem sabe não nos estamos a esquecer de olhar para os nossos filhos que, também atualmente, parecem estar deprimidos com este mundo cão?

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 4 out of 4.

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One thought on ““American Pastoral”: Um filme que corrói o sonho americano

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