Depois de ver “Inception” (2010) penso que a ideia fulcral que vem à cabeça é: “como é que perdi tanto tempo sem ver este filme?”. A retórica inerente à pergunta penso que assombra positivamente a cabeça de praticamente todos os espectadores atentos, porque ver um filme de Christopher Nolan sem a devida atenção é sinónimo de ‘caldo entornado’. No meu caso, a crítica a este belo filme surge após uma segunda visualização, precisamente porque falar sobre esta película requeria, objectivamente, uma segunda experiência reflexiva.
Quando ao filme propriamente dito, há algo que não pode deixar de ser referido sobre este “Inception” (em português, “A Origem“). Antes de o concretizar, vale a pena explicar o plot inicial: Cobb (Leonardo DiCaprio), um especialista no que à complexidade dos sonhos diz respeito, é contratado para, naquela que perspectiva ser a última grande missão da sua vida, implantar uma ideia na cabeça de Robert (Cillian Murphy) enquanto ambos estão a sonhar. Cobb é contratado por Saito (Ken Watanabe) para conseguir levar Robert a fragmentar o legado do pai, o concorrente empresarial máximo e directo de Saito.

A questão que quero frisar como a mais brilhante do filme em si, não é necessariamente o argumento, ou as interpretações, ou até mesmo a banda sonora belíssima de Hans Zimmer; o que a meu ver salta mais à vista e vale pelo filme em si, como constatação, no meu entender, bastante paradigmática, é o próprio conceito do filme. Além de altamente sui generis na forma como constrói o seu motivo narrativo numa viagem inconsciente, mostra-nos, muitas vezes no sub-texto, a real complexidade dos sonhos, de uma forma assustadora de quanto precisa e rigorosa é.
Naturalmente que este argumento de Christopher Nolan é de encher o olho, precisamente porque promove uma dinâmica dramática ao mesmo nível que a própria velocidade rítmica avassaladora, num contexto de thriller bastante assumido, o que nos deixa, ou pelo menos a mim deixou, desolado aquando do fim, num completo vazio intelectual e afins. No entanto, a forma como nos deixa decidir o próprio destino da personagem principal não me parece ser ao acaso: dá-nos tudo em quase todos os três actos, e deixa-nos dar uma parte de nós no desfecho do terceiro. É também uma atitude de humanidade esta com a qual Nolan nos presenteia.
Leonardo DiCaprio faz, no meu entender, o papel da sua vida, num filme onde, apesar de tudo o que tem de bom, ele é o espelho do princípio ao fim. Porque apesar de ele ser o real arquitecto da missão, ele próprio tem uma missão pessoal (relativamente ao seu passado) em jogo, e vai tentar cumpri-las em simultâneo. Portanto, o motivo narrativo é de Leonardo DiCaprio, o desfecho é de Leonardo DiCaprio e a obra só não tem o seu nome porque o próprio conceito, a ideia base estrutural e contemplativa deste filme, é inalcançável e sempre maior que a soma das partes.

O filme está tão bem construído e articulado, que o facto de sabermos que Christopher Nolan abomina efeitos especiais, promovendo um realismo inerente às cenas, deixa quase um ponto de exclamação catártico no pós-visualização. Uma palavra para este senhor, que no meu entender é o maior realizador deste século, não só pela sua qualidade mais do que intrínseca, mas pela ideia inequívoca de que Nolan tenta e consegue sempre elevar a sétima arte nas suas criações, não imitando ninguém e apenas alimentando um novo estilo, com carimbo de certificação de um amor puro e genuíno por fazer (muito bom) cinema.
A ideia de que o tempo é irreversível e que o ser humano está preso em camadas sucessivas do seu próprio consciente, torna-nos quase dependentes daquilo que desconhecemos de nós próprios, e essa é uma ideia que, do ponto de vista psicanalítico, transcende todas as dinâmicas do indizível.
A velocidade com que acompanhamos as viagens temporais deste sonho de duas horas e vinte e oito minutos mostra, não só que o delírio inerente à contemplação é algo que nos acompanha ao longo do tempo (no pós-experiência), mas também que o vazio deixado com o seu término vem de mãos dadas com uma profunda elevação intelectual, cuja leveza e (paradoxal) preenchimento fará de nós muito melhores cinéfilos do que éramos, efectivamente, ontem: quando a ideia deste filme ainda não nos tinha agarrado pela fascinante raiz do sub-consciente.
Por um cinema feliz.