OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

Não tem jeito: parece cliché que em todas as crises apareçam os analistas da televisão, os especialistas e os formadores de opiniões. Encastelados nas suas cadeiras, propagam verdades da noite para o dia, falam inclusive sobre o que não sabem e, para deleite do grande público, explicam todas as coisas. Como filósofo, tal como Luc Ferry, desconfio desse imediatismo e mesmo quando sou chamado para uma entrevista, na maioria das vezes recuso sob o argumento de que terei que estudar mais o tema.

Cheguei a demorar oito anos para dar uma resposta a partir de um questionamento para a solução de um problema. Óbvio que o mundo não esperou pela minha desimportante opinião e, brincando um pouco, não alterou em nada o preço do dólar.

Feito este preâmbulo, li “Diante da Crise: Materiais Para Uma Política da Civilização“, de Luc Ferry (Difel, 122 p.). O que à primeira vista pode parecer uma resposta para a nossa época, na verdade foi uma reflexão pós-quebra do setor imobiliário nos Estados Unidos e a consequente crise dos mercados no ano de 2008. O governo francês pediu uma análise ao filósofo e ele, juntamente com um grupo de intelectuais, pôs-se a pensar acerca dos desafios do Velho Continente. Luc Ferry, incensado pelo cargo de Ministro da Educação de França, entre 2002 e 2004, apareceu no Brasil com destaque, tendo eu assistido a algumas palestras dele na televisão, em canais mais cult. Pois bem, já havia passado da hora de lê-lo.

Capa do livro “Diante da Crise: Materiais Para Uma Política da Civilização”

Neste breve ensaio, e dado o distanciamento necessário para analisarmos as propostas como viáveis ou não, percebi um pensador fecundo e com grande senso de responsabilidade acerca dos temas que trata. Com um olhar filosófico, sociológico, antropológico, político e cultural, investiga a França e a Europa como um todo; discute a supremacia dos mercados norte-americano e chinês e o quanto a Europa tem que lutar para se destacar nesse cenário. Esmiuçando um pouco concepções e estilos de vidas, discute a antiga dicotomia entre o burguês e o boémio e de como a modernidade aproximou os dois estilos, sendo que vários movimentos da contracultura foram cooptados por grandes bancos e industriais.

Discute os privilégios da Previdência francesa e alerta para a necessidade de uma perda gradual de direitos, para evitarmos um Estado incapaz de oferecer direito nenhum. Alude e contrapõe a ideia de “família sagrada”, atribuindo a ela a temporalidade específica, uma vez que muitas mentes atrasadas acreditam que é um laço eterno e que remete a séculos e séculos. Brinca que houve uma determinada época em que o pai se condoía mais com a morte de um cavalo à morte de um filho pequeno, e isso tudo muito bem justificado.

Analisando a França nesta última década, os desafios hoje enfrentados por Emmanuel Macron são visíveis: os “coletes amarelos” intentando incendiar e quebrar Paris e França como um todo; uma economia cheia de subsídios que vê, mesmo dentro da União Europeia, praças mais atrativas para as vendas dos seus produtos, como a República Checa e muitas outras discussões da geopolítica que nos fazem refletir sobre a análise da época em que foi escrito o livro (2009) e a nossa atualidade.

Desconfie dos imediatistas que surgirão com propostas mirabolantes nessa época da Covid-19 e tomara, em breve pós-Covid. Análises refletidas requerem tempo, estudo e disciplina, a menos que se queira dar a receita de um bolo no jornal da noite da SIC. Luc Ferry prova isso com a sua análise, que se mostrou acertada com o passar dos anos.

Alguns trechos do livro:

A economia moderna funciona como a seleção natural de Darwin: numa lógica de competição globalizada, uma empresa que não progredir todos os dias estará fadada a morrer“;

Portanto, é um dever absoluto continuar a reduzir as despesas estruturais do Estado e das administrações. Esse dever é imperativo, para não dizer categórico, até porque não é preciso ser um expert para prever que os problemas criados pelo financiamento das aposentadorias, da saúde e da dependência só se farão agravar de maneira exponencial nos anos que estão por vir! Desse ponto de vista, o fracasso da reforma do liceu, que teria permitido uma economia de, no mínimo, oitenta mil postos, é bastante lamentável“;

A princípio, parece-nos urgente iniciar o mais rápido possível uma reelaboração completa de nossos ensinamentos de instrução cívica a partir de uma reflexão que tome o sentido contrário da ideologia atual – grosso modo, uma ideologia que, sem refletir, continua a sacralizar os cursos de direito constitucional para crianças e de lições de moral, sendo que tanto um quanto outro se mostram mais ou menos ineficazes e inúteis. Parece-nos indispensável mudar de ritmo e fazer com que o ensinamento do civismo se baseie essencialmente em uma coletânea de grandes obras literárias e filosóficas, mas também cinematográficas, uma coletânea que suscite de facto o interesse dos alunos e lhes permita compreender concretamente os desafios da ética coletiva nos dias atuais“.

A ver este último pensamento, OBarrete agradaria e muito ao filósofo Luc Ferry!

Marcelo Pereira Rodrigues

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