Deixemos o mundo das coisas e relações ordinárias e façamos um aporte em literatura. Aula de Gregório para a turma de Carla, na manhã seguinte. De modo interativo, e para além do material didático, havia sugerido a leitura do “Livro Nebuloso” do mês. Dividia a turma em cinco grupos e respeitando idades e convicções, separava uns dez alunos que gostavam realmente de ler além e, numa seleção, como se fosse um técnico, escalava o time. Para aquele mês, sugerira as seguintes obras: “Madame Bovary“, de Flaubert; “O Pai Goriot“, de Balzac; “Os Irmãos Karamazov“, de Dostoievski; “Dom Quixote“, de Cervantes e “Metamorfose“, de Franz Kafka. Turma dividida em cinco grupos de seis, um grupo com cinco e uma aluna só, exigindo a sua diferenciação e o seu jeito de ser não gregário. Era Carla.
Gregório tomou posição em pé, escolheu um melhor ponto para questionar um dos grupos e pediu para que eles compartilhassem a leitura e o entendimento com os demais; estava excitado. Adorava leccionar literatura, literalmente sair do mundo. Indicou o grupo de Dostoievski e uma aluna começou:
— Nosso grupo chegou à conclusão de um assassinato de um pai mesquinho. Três irmãos bem diferente entre si. Lemos o tomo com mais de mil páginas. Sinceramente, achamos a história arrastada e longa, chata até, mas chegamos ao fim da tarefa do livro nebuloso.
— Parabéns, Flavinha! – comentou o professor. – Além disso, percebeu que o autor russo escreve sobre psicologia e comportamento o tempo inteiro? Para quem vai optar pela carreira de Direito, entendem como a psicologia pode afetar um julgamento sobre o que é certo e errado?
— Sim, mas o fato é que Dmitri matou o pai a sangue frio por conta de dinheiro…
— Opa, opa! – interveio Gregório. Não diga o final. E quem sabe você não interpretou direito? Mas deixe em suspenso. Dmitri é acusado formalmente, mas, por favor, não conte a sequência. Falemos em fatos genéricos.
— Não posso julgar Dmitri? – perguntou outra aluna do grupo.
— Vamos além. Ocorre um parricídio. Foi parricídio? Vamos deixar para os leitores descobrirem. Os futuros e breves leitores que irão além da saga “Crepúsculo“. – tornou o professor – risadas gerais.
— Então, o que você quer saber?
— Que tal falar das personagens? Quais delas seriam o espelho do próprio autor? Dmitri, Ivan, Aliócha? O pai? A amante? Enfim, perceberam o jogo imbricado do livro? Antes mesmo de julgarmos, ficamos tocados pelos personagens, que são complexos. Psicologia. Aliado à literatura. Para quem for seguir a carreira na Psicologia – dando um giro pelos grupos para dar ênfase – esse autor é fundamental! Para quem for seguir na carreira para advogado, pensem nisso, não julguem a partir de preconceitos, pois bem, esse autor é fundamental! Para quem se apaixona por literatura, esse autor é fundamental! E para quem compreender a vida com toda a sua glória e mazela, acreditem…
— Esse autor é fundamental! – em uníssono a sala respondeu.
— Parabéns a vocês todos! – tornando ao grupo – gostariam de citar um trecho?
— Escolhemos um – respondeu Flavinha – posso ler?
— Por favor – respondeu Gregório – fique de pé e cite. Atenção de todos.
Flavinha se ergueu, arranhou a garganta e começou: “Antes já lhe acontecera cair frequentemente em melancolia e não era de admirar que ela o assaltasse em um momento como esse, quando, depois de romper com tudo o que o havia atraído para esse lugar, ele se preparava para dar, no dia seguinte, mais uma brusca guinada e enveredar por um caminho novo, totalmente desconhecido e mais uma vez completamente só e, como antes, cheio de esperança, mas sem saber em quê, esperando muito, esperando demais da vida, sem, no entanto, conseguir ele mesmo definir nada do que havia em suas expectativas ou em seus desejos. E, ainda assim, embora nesse instante o desânimo com o novo e o desconhecido estivesse efetivamente em sua alma, não era nada disso que o angustiava. ‘Não seria aversão à casa de meu pai?’ – pensou consigo. – Parece que é isso, de tão enojado que estou, e embora hoje eu atravesse pela última vez esse limiar abominável, mesmo assim dá nojo…'”.
Gregório esclareceu que o trecho definia um personagem, o sábio ateu Ivan e pediu uma salva de palmas para Flavinha e o grupo. Perguntou se a sala tinha alguma pergunta mais e, como não se manifestaram, passou para o grupo de Carlos Eduardo, que comentaria sobre Kafka. O aluno iniciou:
— Um ser humano que se transforma em uma barata.
— Não precisamente uma barata – interveio Gregório – falemos de um inseto, não especifiquemos.
— Tá bom! – tornou Cadu – pois bem, numa bela manhã Gregor Samsa acorda transformado em inseto.
— Gregor vem de Gregório? – perguntou um aluna, de outro grupo – risada geral na sala.
— Infelizmente, sim – riu Gregório. Mas continuemos, sem interrupções.
— Pois bem, o nosso professor Gregório acorda metamorfoseado em inseto – mais risos na sala – falando sério, uma história fantástica e breve de Kafka, leitura leve e interessante.
— Vamos aprofundar um pouco mais? – provocou o professor.
— Como assim?
— Que tal me falar da profissão de Gregor?
— Ao que me parece, era caixeiro viajante. Representava uma firma.
— O.k. Estamos iniciando bem. Falemos da família dele.
— Morava com a mãe, com o pai e uma irmã.
— Bacana. Está melhorando a descrição. Agora algo acerca da sua psicologia?
— Como assim? – tornou Cadu.
Carla estava enfadonha, decidindo se dava um tiro nos tímpanos ou se enforcava-se numa corda qualquer. Disfarçou o enfado. Entendia que “Metamorfose” era um livro simples e objetivo. Resignou-se. Ouviu Greg; esse estimulou:
— Percebeu, Carlos Eduardo, que em nenhum momento da trama Gregor Samsa lamenta a sua condição?
— Sim – respondeu Cadu.
— Sua preocupação era apenas com o fato de não ter conseguido se levantar para ir ao trabalho. Ficou temeroso de que o gerente da loja em que trabalhava fosse bater à sua porta para cobrá-lo pela falta de compromisso. Percebeu isso?
Uma aluna do grupo, Camila, comentou:
— Sim, isso me chamou bastante atenção.
— E o que podemos aprender disso?
— Que não devemos nos atrasar para o trabalho? – perguntou Cadu.
Mais risadas na sala. Gregório interveio, esclarecendo que sim, mas que era arguta a tese de Kafka de que só valemos verdadeiramente quando estamos produzindo, que só existimos a partir do momento em que desempenhamos as nossas funções e que o sistema era assim mesmo. As pessoas não tinham muito tempo para perceberem as relações humanas que existem além da cada função. Esclareceu que, se ele estivesse deprimido e refugiado em casa, a escola procuraria saber e, na ânsia e necessidade de contratar outro professor, eliminá-lo-ia do quadro de funcionários da escola. A vida era assim.
— Isso tudo é muito injusto – ponderou Camila.
— Não se trata de justiça, Camila. Trata-se da vida!
— E qual a lição podemos tirar dessa história? – perguntou Cadu.
— Torno a pergunta a você. Fale para a turma as lições tiradas do livro, por favor!
— Bem, senti que família é uma coisa muito complicada. Quando Gregor vira barata, é solenemente escondido no quarto e de lá não pode mais sair. Sua família, que oferece pensão, tem vergonha dele e aos poucos ele vai sendo um peso nas costas dos familiares. Causa incómodo. A ponto de jogarem nele uma maçã para o lembrarem do seu lugar naquela casa.
— Muito bem, Cadu! Muito bem, parabéns! – uma salva de palmas para o grupo e a seguir Gregório pediu uma citação.
Camila se levantou, arrumou o cabelo e fez questão de esclarecer que citaria o início da trama por se tratar de algo muito bem construído, esclarecedor e aterrador ao mesmo tempo. Citou: “Certa manhã, depois de despertar de sonhos conturbados, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado de costas sobre a própria couraça e, ao erguer um pouco a cabeça, enxergou seu ventre marrom, acentuadamente abaulado, com profundas saliências arqueadas, sobre o qual o cobertor, quase escorregando, estava prestes a cair. Suas muitas pernas, terrivelmente finas em comparação à largura do corpo, agitavam-se desamparadas diante de seus olhos. ‘O que aconteceu comigo?’, perguntou-se. Não era um sonho. Seu quarto, um verdadeiro quarto humano, só que um tanto pequeno, mantinha-se calmo entre as quatro paredes de hábito. Em cima da mesa, onde um mostruário de tecidos desempacotado se espalhava – Samsa era caixeiro-viajante –, pendia o retrato que ele recentemente havia recortado de uma revista ilustrada e colocado numa linda moldura dourada. Representava uma senhora de chapéu e estola de pele, ereta, que estendia em direção ao observador uma pesada manga, também de pele, que lhe ocultava todo o antebraço”.
— O que é estola? – perguntou uma aluna.
— Estola é tipo um cachecol. – pontuou Gregório – e dirigindo-se ao grupo – Gostei demais da interpretação de vocês!
— E o que isso tem a ver com a atualidade? Ler esse cara nos ajuda em qual profissão? – perguntou um pragmático aluno.
— Quer explicar? – Gregório apontou Cadu e Camila.
— Passo a vez – respondeu Cadu.
— Bem – tornou Gregório – Kafka era advogado. Mas sua paixão mesmo era a literatura. Mas, naquela época, estamos falando do início do século XX, em Praga, hoje capital da República Checa, literatura não era certamente coisa bem vista. Os familiares de Kafka entendiam assim. Bem, fazendo uma atualização, e espero que vocês não me dedurem nem com os seus pais e nem com a direção da escola, me prometem?
— Prometemos – coro em uníssono.
— Olha lá, hein? Pois bem, muitos de seus pais tentarão escolher ou influenciar as suas decisões na hora de decidirem as suas profissões. As que dão mais status são as que os deixarão mais felizes? Cada um de vocês deve se perguntar isso. Entenderam? E lembrem-se: não criticando o Marcos que perguntou sobre utilidade, nem tudo na vida é para ser tratado como moeda de troca, como mercadoria. Tratemos de ser felizes com as coisas que temos. E se me permitem um conselho – deu ênfase: – Mandem às favas às orientações profissionais dos psicólogos. Escutem seus próprios corações. Mais vale um pintor de quadros feliz a um juiz enfastiado.
A sala bateu palmas.
A seguir, o professor dirigiu-se a um grupo composto por meninas, que ficara incumbido de falarem sobre “Madame Bovary”. Samantha, uma delas, começou:
— Ema Bovary era uma vadia!
— Opa! Interveio Gregório – risos no ambiente. – Nesses tempos de politicamente correto, cuidado com a língua, mocinha! Pode tomar um processo de alguma feminista.
— Tá bom! – voltou Samantha – mas a senhora Ema, perdoe-me dizer, é muito fútil. Casa-se por casar, passa a cultivar amantes a partir da leitura de romances de época. Perdoe-me dizer, professor, mas a personagem é muito fútil.
— Insatisfação, Samantha! Insatisfação! A insatisfação crónica escrita pelo Flaubert. Se fizermos um salto, todos nós somos assim, de certa forma. Insatisfeitos. Por natureza! Percebeu no livro as obrigações sociais? As etiquetas da época? O modo de vida?
— Sim, professor! Mas o médico marido da Ema era um bom sujeito. Um cara bom! Ela não precisava fazer isso com ele, botar chifres no coitado.
De repente, a sala se interessou. Como se estivessem conversando sobre uma vizinha de apartamento, a discussão ficou acalorada e a turma se dividiu entre a compreensão aos atos de Ema e a sua condenação. Gregório gostou do resultado. Sentiu que estimulara a turma a pensar sobre o tema. E convidou todos a lerem o livro, obra-prima da literatura.
— Fale mais sobre a obra – Gregório pediu.
Samantha comentou, tratou de espezinhar Ema e, na hora da interpretação, atualizou: — Penso, professor, que hoje devemos tomar cuidado com as convenções sociais e familiares. Muitas das vezes, cumprimos papéis que nos são colocados pela sociedade, pela família. E não somos felizes assim.
— Muito bem, Samantha! Brilhante! – dirigindo-se à turma como um todo – alguma pergunta?
Nada de perguntas. Gregório pediu a citação de um trecho. Samantha perguntou se podia ficar sentada. Gregório esclareceu que, pelo fato de ter chamado Ema de vadia, teria que ler em pé. Mais risos. Ela obedeceu, abriu o livro e citou: “A primavera retornou, e Emma sentiu-se afrontada com os primeiros calores, quando as pereiras floriram. Logo no começo de julho, passou a contar nos dedos as semanas que faltavam para chegar o mês de outubro, pensando que o marquês d’ Andervilliers daria outro baile em Vaubyessard; mas todo o mês de setembro passou sem cartas nem visitas. Após o aborrecimento dessa decepção, seu coração ficou de novo vazio, recomeçando a série dos dias monótonos. Iam, pois, continuar assim, uns após outros, sempre os mesmos, incontáveis, sem surpresas! As outras existências, por mais insípidas que fossem, tinham, pelo menos, a possibilidade do inesperado. Uma aventura trazia consigo, às vezes, peripécias sem fim, o cenário transformava-se. Mas para ela nada surgia, era a vontade de Deus! O futuro era um corredor escuro, que tinha, no extremo, a porta bem fechada”. Samantha entregou a Gregório um texto que o grupo havia feito. Pediu para ele dar um parecer depois. Intentava publicar no anuário da escola. Gregório ficou de ler e opinar.
Salva de palmas. Carla simpatizou-se com Emma.
Gregório parabenizou e apontou o grupo de “Dom Quixote”. Eles leram uma versão infanto-juvenil. Mas o professor não implicou. Queria apenas que o grupo tivesse uma ideia da história e que a compartilhasse com os demais. Foi muito inspirador. Gregório conduziu a atualização falando de pessoas sonhadoras, das lutas contra os moinhos de vento e do amor desmedido. Acreditar em algo, mesmo que o mundo pareça não estar nem aí para o seu sonho. Falar de amizade com o exemplo do fiel escudeiro do fidalgo, Sancho Pança. Falar de amizade, de amor, de sonhos, inspirou a todos a irem além. Gregório sabia do alcance da obra, e terminou:
— Alunos e alunas, queridos! Essa é uma obra-prima de um dos maiores escritores de todos os tempos, Miguel de Cervantes. Da mesma forma que pedi a vocês para não usarem o adjetivo maquiavélico, pois Nicolau Maquiavel não era mau, bem, não usem o adjetivo quixotesco quando tentam definir pessoas idiotas e simples sonhadoras. Acreditem! O mundo pertence aos sonhadores. Até hoje artistas vivem em outra esfera. Não pertencem ao simples mundo de nós, mortais. Acreditem nisso.
Um aluno pediu licença, queria tocar uma música. Gregório concordou. Ele sacou seu celular, acessou o playlist e a sala ouviu a música e letra dos Engenheiros do Hawaii, Dom Quixote:
“Muito prazer, meu nome é otário
Vindo de outros tempos mas sempre no horário
peixe fora d’água, borboletas no aquário.
Muito prazer, meu nome é otário
na ponta dos cascos e fora do páreo
puro sangue, puxando carroça.
Um prazer cada vez mais raro
aerodinâmica num tanque de guerra
vaidades que a terra um dia há de comer.
“Ás” de Espadas fora do baralho
grandes negócios, pequeno empresário.
Muito prazer, me chamam de otário
por amor às causas perdidas.
Tudo bem, até pode ser
que os dragões sejam moinhos de vento.
Tudo bem, seja o que for
seja por amor às causas perdidas.
Por amor às causas perdidas
tudo bem… até pode ser.
Que os dragões sejam moinhos de vento
muito prazer… ao seu dispor
Se for por amor às causas perdidas
por amor às causas perdidas.“
Gregório aplaudiu, sendo seguido pelos demais. Agradeceu a canção colocada por Nuno. A seguir perguntou qual livro seria abordado, se a exposição solo de Carla ou “O Pai Goriot”. O grupo de Balzac se prontificou. Falaram do romance de época, em uma França não tão deslumbrante assim, da pensão no subúrbio e da mesquinhez da filha que deixou o pai morrer à míngua, importando-se pouco ou nada com ele. O professor parabenizou a interpretação, esclareceu que Balzac era um crítico dos costumes da época e que escreveu cerca de três mil personagens ao longo de toda a sua obra, que passou a ser chamada “Comédia Humana“. Indicou “As Ilusões Perdidas” como leitura obrigatória para aqueles que desejam evitar aborrecimentos e deslumbramentos, refutou argumentos de alunos dizendo que Balzac estava ultrapassado (“nunca esteve tão atual. Leiam as entrelinhas”) e após algumas perguntas genéricas, ia dando a vez para Carla quando tocou o sinal. Término da aula! Carla ficaria para a aula seguinte.
Gregório pediu para arrumarem a sala, cumprimentou alguns alunos e ia se preparando para o intervalo quando foi seguro no braço por Carla, que pediu:
— Depois do café, teria um minuto?
— Claro. Pode ser agora. Vamos andando.
Saíram no corredor, procuraram um lugar mais tranquilo e Carla começou:
— Quero te pedir desculpas pelo meu capricho de outro dia.
— Tudo bem, Carla! Não se preocupe.
— Dei uma cena também com a minha mãe no shopping.
— Tudo bem contigo?
— Mais ou menos. Por enquanto acho que sim. Refleti que estava sendo chata e insuportável! O mundo não tem culpa se eu não caibo nele.
Gregório observou as feições de sua aluna. Gostou do que ouviu e do que viu. Interpelou:
— Algum problema mais sério com a sua mãe?
— Não. Ah, e falar nisso, ela quer te convidar para jantar lá em casa.
— Sério? – Gregório parecia mais propenso a tomar injeção na testa.
— Sim. Bem, conhecendo minha mãe, acho que o assunto dela não irá te agradar muito. Sabe como é?! Vai falar das amigas chiques, da cerimónia com o governador, mas pensando aqui, quem sabe ela pode te ouvir em assuntos com um pouquinho mais de essência? E pode acreditar! Nesses encontros meio sem pé nem cabeça em casa, minha mãe prepara um jantar daqueles. Se fosse você eu iria. Eu gostaria que você fosse…
— Carla! Há uma coisa que quero deixar claro.
— Sim.
— Não podemos mais ficar muito próximos. Nossa relação não pode passar a relação de aluno-professor e tampouco a de amigo-amigo.
— Sim, sei disso. Fui caprichosa outro dia. Mas não irei me matar, juro que não.
— Tá certo! Isso apenas para deixar bem claro – sorriu.
— E aí, vai?
— Vou pensar.
— Ah, vai! Será divertido! Pelo menos eu acho. Olha, não parece ser muito o seu ambiente. Acho que vai se deslumbrar com a mesa e com os talheres. Mas o mais importante é que irá rir muito, isso eu posso garantir.
— Tá, vou pensar.
— Vou falar para minha mãe que você aceitou. Fale-me só o dia e ela manda até te buscar.
— Não, pode deixar! Eu chego lá.
— Então vai?
— Vou.
Carla ficou de acertar com a mãe a data e ligaria para Greg para combinarem. O professor perguntou qual livro ela tinha escolhido e ela mais uma vez citou um de Nietzsche, desta vez “A Gaia Ciência“. Gregório sorriu, despediu-se da aluna com um beijo no rosto. De forma provocante, Carla resvalou os lábios para perto da sua boca e sorriu. Gregório foi tomar café…
A caminho da próxima aula, Gregório teve tempo de ler a redação entregue pelo grupo de Samantha. Mesmo rapidamente, leu e daria o aval para a publicação no jornal da escola.
“Madame Bovary“, de Gustave Flaubert. Após a leitura deste clássico, fiz-me a pergunta: como e por que fiquei esse tempo todo sem ter conhecimento dessa história? Mais do que uma história de adultério pura e simplesmente, o livro narra a vida insossa de Ema Bovary, que se casa com o médico Carlos e que sonha com as heroínas dos romances água com açúcar que lê, vislumbrando as paixões arrebatadoras. O livro é uma crítica à burguesia, irónico de modo refinado e à época foi considerado um escândalo, tendo sido o seu autor processado. Mas engana-se quem pensa que há descrição erótica-pornográfica na obra; nada disso, o livro apenas atenta, segundo as leis francesas, contra a moral e os bons costumes.
Além da temática traição conjugal e vida sem sentido, o livro retrata a época francesa do embate entre a enraizada religiosidade católica e os avanços de uma ciência que pretende dar o salto. Chegam a ser hilários os debates dos amigos-inimigos (na verdade se suportam) farmacêutico Homais e o padre Bournisien. Retrata também o mundo das aparências, da hipocrisia, da busca da fama a qualquer preço etc.
O livro foi publicado na França em 1857, tendo levado exaustivos cinco anos para ser elaborado. Flaubert foi um verdadeiro operário das letras, trabalhando cerca de doze horas diárias e hoje, graças à tecnologia, dá para ver na Internet a digitalização dos manuscritos e, construído como obra a partir de folhas A3, observamos as enormes rasuras, utilização das margens das páginas e a constante elaboração de “Madame Bovary”.
Sugeriria a padres, em cursos para noivos, obrigarem os pretendentes a lerem esse livro. É mais um sonho surreal meu. Afinal, “Madame Bovary” desmascara as juras de amor eterno, introduzindo o efémero nas mais ínfimas atitudes. Esse clássico da literatura universal fez de Ema Bovary uma personagem com vida própria, como se fosse de carne e osso, tal o Don Quixote de La Mancha de Cervantes. Jean-Paul Sartre, no século XX, dedicou uma exaustiva biografia sobre Flaubert, e há pouco fiquei sabendo que o Prémio Nobel de Literatura, o peruano Mario Vargas Llosa, é apaixonado por Ema e, inclusive, dedicou a ela uma obra, “A Orgia Perpétua”.
Aos homens casados, cuidado: observem traços de Emma Bovary em suas respectivas esposas. E cuidado com os Rodolfos. Resumindo, duas coisas: 1 – o livro é sensacional! 2 – era um ser humano menor antes da leitura desta obra-prima. Entrou tranquilamente para a lista dos meus cinco livros essenciais.
O professor percebeu que a redação tinha sido feita por um garoto. Surpreendeu-se e pensou em mostrá-la a Arthur. Quem disse que o mundo estava perdido?”.
Coincidentemente, neste mesmo momento, a diretora estava lendo um artigo de Gregório. “Marcado de Trabalho“:
Ano passado, durante preleção para alunos de um colégio, afirmei o seguinte: “Infelizmente, vocês, jovens são subordinados desde cedo a pertencerem a um conceito de ‘marcado de trabalho’. O que há de estranho nessa afirmação?”.
— Não é mercado de trabalho, professor? — perguntou uma aluna.
— Não. Foi intencional — respondi à adolescente. Infelizmente, vocês estão sendo moldados, mesmo que inconscientemente, a pertencerem a um mercado de trabalho que, no mais das vezes, não pediram para si mesmos. Pensar com suas próprias cabeças, ter autonomia de decisão, fazer aquilo que gostariam verdadeiramente e não aquilo que os seus pais gostariam que vocês fizessem. É sabido que, por uma questão de status, na maior parte dos casos vocês optarão por Direito e Medicina. Serão felizes? A vida irá dizer. Estou cansado de ver médicos deprimidos e advogados desestimulados na profissão. O grande ideal de uma vida profissional é a felicidade.
Claro que, antes disso, eu tinha selecionado a canção Ouro de Tolo, de Raul Seixas, que, desde já, recomendo a qualquer um que tenha sensibilidade e reflexão. A letra é um petardo de um cidadão que conseguiu sucesso na vida depois de ter passado fome por dois anos na Cidade Maravilhosa. Com todo o sucesso advindo de uma vida que lhe parecia feliz, sendo que Raul conseguiu, inclusive, comprar um Corcel 73. Bem, lá no final ele se diz abestalhado e decepcionado.
Nos primórdios do pensamento filosófico, Sócrates foi acusado de corrupção da juventude por incutir-lhes ideias que, aos olhos dos mandatários de Atenas, poderiam ser consideradas subversivas. Com sua mania de questionar tudo, Sócrates desconstruía o pensamento dado como pronto e acabado e indagava aos jovens se aquilo que fora passado pelos pais era realmente o certo. Bem, sabemos do fim de Sócrates: condenado a beber cicuta, depois de ter lhe sido sugerido o degredo de seu torrão natal.
Nesse “marcado de trabalho”, a culpa é da tradição, e não somente da vontade de um pai e uma mãe apenas. Isso foi passado de geração a geração, sendo que se inverte a ordem; não interessa se determinada profissão trará satisfação a um jovem, antes se ventila quanto o profissional daquela área ganha. Penso serem uma aberração testes de vocação (na área da Psicologia), onde delegamos para outro profissional um direcionamento para aquilo que alguns traços de nossa personalidade indicam. Como proponho sempre “pensar com a própria cabeça”, não consigo entender como delegamos a outrem pensar algo por nós. Isso só pode ser um pensamento embutido de que “os jovens têm cabeça fraca”. Sinceramente, não creio nisso.
Tomara que despertem em alguns jovens o desejo de serem filósofos, escritores, escultores, pintores, músicos, palhaços, atores etc. Chega da mediocridade apenas de pertencermos a um status quo onde a regra de mercado diz aquilo que devemos ou não devemos fazer. Sou a prova viva de que podemos conciliar profissão com prazer. Amo o que faço, e o faço como se estivesse brincando.
Em breve, serei condenado por corrupção de menores. Uma taça de cicuta me espera…
Refletiu sobre ele, pensou que seria necessário vigiar o professor em suas falas e o quanto era complicado lidar com os pensadores. “Pensadores pensam demais”.