I
A Pluralidade de Motivações Post mortem
A morte, consequência trágica de viver, é um evento que representa sentimentos diferentes de acordo com a relação que se tinha com o falecido. Para Marcos (Leonardo Sbaraglia), o protagonista de “Nieve Negra”, o óbito do seu pai significa o término de um capítulo da sua vida. Regressa de Espanha até à sua cidade natal, Patagónia, Argentina, onde tenciona espalhar as cinzas do progenitor ao lado de onde foi enterrado o seu irmão mais novo, que dizem ter falecido devido a uma “avalanche”. A meses de ter o seu primeiro filho, Marcos deseja acima de tudo cumprir este último desejo do seu pai e tentar recuperar alguma paz de espírito que perdeu depois de forjar uma grande mentira.
Para Laura (Laia Costa), namorada de Marcos, a queda do sogro tem uma simbologia meramente monetária, pois está em jogo a venda de um terreno que vale 11 milhões de dólares. Nesse mesmo terreno está construída uma cabana onde reside Salvador (Ricardo Darín), o irmão de Marcos, que está no epicentro do drama por ter de ser convencido pelo casal a abandonar o local onde vivera durante décadas. Tarefa que se revela complicada, não fosse a morte do seu pai figurar uma espécie de alívio revoltoso para Salvador, depois de anos de maus tratos e humilhações.
Com estas dinâmicas, os argumentistas Leonel D’Agostino e Martín Hodara (que também realiza o filme) procuram unir o que uma série de acontecimentos desuniu, utilizando a morte da figura paterna como motor de múltiplas motivações. Por consequência, os esqueletos do passado retomam a emergir à deriva e provocam conflitos, em primeira instância, verbais, e mais tarde, físicos.

II
O Flashback como Vínculo entre o Presente e o Passado
No audiovisual, o flashback tem o propósito de evocar o passado de modo a tornar inteligível a ação corrente, adicionar contexto ou dinamizar o processo de narração. Seja através de recordações das personagens ou a visualização de exposição importante, o método é comummente utilizado desde a curta-metragem francesa “Histoire d’un crime” (1901), ainda na era do cinema mudo.
Em “Nieve Negra”, os flashbacks estão intimamente correlacionados com os traumas e vivências da adolescência das personagens. Facto refletido não só pelo seu conteúdo, como pela montagem incisiva de Alejandro Carrillo Penovi. A câmara, estacionária, gira a meio ritmo da esquerda para a direita, movendo-se do presente para o passado, sem corte aparente. Esta ausência de corte, além de ser um mecanismo visual atrativo, funciona também como intensificador da significância das memórias que são exibidas. Tão vividas como se estivessem a ser presenciadas aqui e agora, preservadas pela exigência das condições térmicas.
III
A Frieza da Montanha
Associar de alguma forma o local de um filme à sua temática acrescenta uma camada de densidade que é sempre bem-vinda. Tal como é inconveniente separar “The Matrix” (1999) da azáfama do espaço urbano ou o isolamento rural de “The Village” (2004), também “Nieve Negra” bebe imenso da solidão glacial do seu cenário primário.
Fora das zonas polares, a Patagónia é uma das regiões mais frias, sendo possível encontrar zonas desertas, assoladas pelo frio e pela secura. Florestas pelas montanhas dentro, vales e rios. Um ambiente um quanto ou tanto hostil, que o diretor de fotografia Arnau Valls Colomer capta com dualidade. Ou seja, tanto tem o poder de maravilhar com a sua beleza pitoresca, como faz desejar nunca ser presenciado fora da distância confortável entre a tela e o espectador.
É, portanto, apropriado aplicar esta atmosfera repreensível ao enredo do filme, onde existe a mesma quantia de informação expelida e escondida. A certo ponto pode afigurar-se que o véu está plenamente descoberto, mas do mesmo modo que uma mentira negra está preservada nesta terra gelada, também é natural que existam ramificações que estejam a implorar por esclarecimentos.

IV
O Segredo Gélido
Salvo certos pontos de conveniência que afligem uma quota-parte do cinema, não sendo o sul-americano exceção ao flagelo, a construção do filme está feita com decência e culmina num plano arrepiante. Em retrospetiva, os últimos minutos estão em sintonia com as motivações centrais das personagens e elevam o tom sombrio que pairava com alguma timidez nos primeiros dois atos. A realização de Martín Hodara guia interpretações sóbrias, que caminham a par e passo com a narrativa para no último ato revelar um segredo gélido. Um pacto de silêncio mútuo em prol de uma vida que escolhe deliberadamente abandonar os pecados do passado, e focar-se no consolo do que o futuro poderá oferecer.
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Excelente resenha sobre o filme. Já o assisti, mas irei fazê-lo novamente. Parabéns, Bernardo Freire!
Muito obrigado! Vê-lo com uma perspetiva fresca (sabendo o que se passa na história) pode certamente revelar camadas extra. Força!