“Never Rarely Sometimes Always” (2020) tem como protagonista uma rapariga de 17 anos, Autumn (Sidney Flanigan), da Pensilvânia, que abre o filme com uma actuação musical para um público variado, mas que incluía a sua família, e esse momento demonstra não só que a música é uma das suas fortes paixões, mas também que ela tem, de facto, bastante talento.
Acontece que o clima é, na verdade, pesado naquela família, com o pai a revelar-se super alheio a tudo, cheio de vícios e desligado do colectivo que, juntamente com duas irmãs e a sua mãe, Autumn e o seu pai formavam. Conseguimos perceber, com bastante profundidade, o ódio que ela sente pelo seu progenitor, sobretudo pela sua atitude deslocada, fria e de incompreensão que fora transparecendo ao longo da narrativa, de forma mais evidente num primeiro momento.
Autumn trabalha numa caixa de supermercado junto com a sua prima, Skylar (Talia Ryder), e somos capazes de entender a forte relação que as une, quase que como um refúgio e um porto de abrigo, paradoxal ao distanciamento que irracionalmente tem para com o seu pai. Porém, a um certo momento, ela decide consultar uma médica, na possibilidade de estar grávida. Aí tem, de facto, a confirmação.

Assim, Autumn quereria proceder a um aborto, e é aí que as complicações começam. Querendo esconder tudo dos pais, e após começar a ter algumas dores intestinais e de outra ordem, com vómitos, etc., esta decide ir com a sua prima até a uma clínica em Nova Iorque, capaz de interromper a sua gravidez de 18 semanas, e é aí que o filme começa a ficar interessante.
Nessa viagem, somos confrontados com o sofrimento contínuo por parte de Autumn, que carrega consigo um bebé que sabe que “irá matar”, e essa é uma das boas e fortes vertentes ao longo de todo o filme; além disso, entendemos o que é estar naquela situação, num epicentro contínuo de olhares, julgamentos, incompreensões e conselhos/avisos para uma decisão contrária a aquela que ela já tinha tomado há muito tempo.
Na verdade, e ainda para mais, revelou em confissão a uma das auxiliares pré-tratamento que tinha sido forçada a ter relações sexuais, muitas vezes de forma desprotegida, e que teria sido, precisamente, esse contexto que tinha motivado a gravidez e a posterior intenção de a interromper.
Devem, no entanto, ser feitas algumas críticas (sempre construtivas) à forma com a narrativa surge: um dos grandes desagrados prende-se com um argumento um pouco pobre por parte da também realizadora da película, Eliza Hittman. Demasiado previsível e muito ao estilo de um documentário, que claramente é elucidativo para quem já experienciou uma situação como esta, e até mesmo para um comum mortal que não consegue entender aquela dor porque nunca passou por isso, mas que se perde, precisamente, na sua superficialidade.

Claro que temos coisas positivas a enaltecer, nomeadamente, a sua banda sonora calma, tranquila e contemplativa, e uma cinematografia que vive, sobretudo, de planos contínuos, prolongados, que conseguem quase transpor o espectador para a realidade cinematográfica, mas desiludindo, infelizmente, em conteúdo.
Uma das coisas mais interessantes, igualmente, que o filme traz é mostrar como as duas primas tiveram que se desenrascar uns dias numa cidade que não conheciam bem, contando os tostões, sem o apoio de ninguém, naturalmente por escolha – naturalmente com a ideia de um sacrifício por um bem maior. No entanto, há uma certa ideia que fica no ar: será que foi o pai que violou, repetidamente, a filha durante este tempo e é, concretamente, esse acontecimento que espoletou a relação fria entre ambos? É só uma possibilidade, porque, de facto, o filme no início foca muito esse contraste, mágoa e distanciamento entre ambos, até alguma repulsa de Autumn para com o seu pai.
O facto de essa informação, quanto ao violador, ficar no ar, sem esclarecimento, foi uma escolha acertada por parte da realização e argumento, mas o final, esse, tão essencial para perceber se estamos a falar de uma obra meramente interessante ou mais do que isso, fica demasiado aquém. Por outro lado, estamos perante uma história bastante edificante, social e emocional.
Por um cinema feliz.