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Porque A Arte Somos Nós

  • O mito de Klaus Kinski

(continuação…) – a primeira parte disponível aqui.

Klaus Kinski, como escritor, não difere muito do ator, o escárnio e a ira marcantes estão presentes em cada página dos seus livros. Dotado de uma linguagem feroz, sem adornos, Kinski revela a realidade de forma crua e mundana.

Na autobiografia “Sou louco pela sua boca de morango“, que anos mais tarde foi revista e reeditada, em 1991, sob o título “Preciso de Amor“, o filho descreve o próprio pai como se fosse apenas um escritor, descrevendo um personagem hediondo e grotesco: “Ele não tinha o apelido de Bulli devido ao seu pénis grosso ou aos seus testículos grandes. Bulli também é uma abreviação para buldogue. Não era devido à sua careca, pois os buldogues ingleses também parecem possuir uma careca, mas o seu rosto inteiro era assim. Tudo na sua cara descaía para baixo como se ela tivesse muita pele“.

Aqueles que esperavam na autobiografia apenas a descrição da vida de um artista a acertar contas com o passado cruel ou a vingar-se do destino, são surpreendidos pelo distanciamento com o qual o autor desenvolve uma linguagem coagulada de emoção. Não foi sem razão que o escritor Kinski foi comparado a Céline, Rimbaud ou Henry Miller.

Klaus Kinski no filme “Nosferatu: Phantom der Nacht”, de Werner Herzog (1979)

Como um grande artista, que sabia intuitivamente trabalhar com a ficção e a realidade, o autor muitas vezes funde uma na outra, tornando-as inseparáveis ou então invertendo os valores. Kinski adaptava. No entanto, isto de forma alguma não desvaloriza a autobiografia, pelo contrário, a partir deste aspeto aproximamo-nos um pouco da inquieta e incógnita personalidade kiskiana.

O realizador e amigo, Werner Herzog, com quem concluiu as melhores interpretações da sua vida, como em “Aguirre, a Cólera dos Deuses“, que culminou no seu sucesso indubitável, descreve o ator como um homem violento, que muitas vezes feriu fisicamente os companheiros, ao mesmo tempo em que era dominado por um medo infantil. Certa vez, para obrigá-lo ao autocontrole, Herzog forjou possuir uma arma e não hesitou em usá-la contra Kinski, se este não se comportasse e terminasse a filmagem. Nestas alturas, por medo, o ator obedecia como um menino sensato.

Herzog inclusive relata a turbulenta relação entre ambos no documentário “Mein liebster Feind – Klaus Kinski” (“Meu Melhor Amigo“, 1999) e deixa claro que, em certos casos, esta turbulência era simulada para chamar a atenção do público e criar um mito – o mito Klaus Kinski. Na sua autobiografia, o ator intensifica a inimizade entre eles, esbanjando adjectivos de injúria e afronta. Julgava, caso contrário, não conseguir despertar o interesse do público.

Os supostos casos de incestos com a filha, ou dele com a própria mãe, foram motivos de escândalo pela inverosimilhança. Por esta razão, a grande atriz Natasha Kinski, filha do ator, cortou relações com o pai. Kinski foi um ególatra que não hesitava em criar situações absurdas para ser o centro das atenções.

Podemos dizer que Kinski seguia a tradição literária de romper com os valores burgueses, de expor a sua revolta através de expressões fortes, metáforas marcantes e uma intensidade baseada na obsessão e ironia. Gritar e vociferar era típico da sua apresentação artística.

Era esta interpretação entumecida de força e emoção que enchia grandes teatros e salas de concertos, como o Sportpalast em Berlim, onde Klaus Kinski entusiasmou o público de forma inesquecível, recitando o Novo Testamento sob a sua própria versão. E são famosas as recitações dos poemas de François Villon, um poeta que também era dono de uma personalidade marcante e de uma linguagem expressiva.

  • Klaus Kinski no cinema

Klaus Kinski, proveniente de uma família paupérrima, vivendo na Europa pós-guerra, começou a trabalhar no teatro. Uma das peças que vale a pena ser mencionada é a de Jean Cocteau, “A Voz Humana“, onde Kinski atua a solo, no papel de uma jovem mulher que enlouquece de solidão e fica o tempo inteiro a falar ao telefone. A encenação, considerada pelo público é vista como uma provocação, um escândalo, mas coloca em destaque o talento do jovem ator.

Klaus Kinski não entende a indignação do público e da crítica. Se o teatro é a arte de interpretar, por que não pode ele interpretar uma mulher, um cão ou uma árvore? O seu rosto é o de uma criança, mas o seu olhar está repleto de maturidade, e ele transforma-o de um momento para o outro. “Nunca encontrei um rosto igual“, comenta mais tarde Cocteau.

Na Alemanha, ficou mais conhecido, nesta época, através da atuação numa série de filmes dos romances policiais de Edgar Wallace, onde sempre fazia o papel de homem mau e gangster. Depois de recusar trabalhar com Federico Fellini e Roberto Rossellini, tornou-se o ídolo de facto destes italianos, com o filme “Por Mais Alguns Dólares” (1965), de Sergio Leone. O faroeste italiano pertence a uma espécie de filmes que estavam na moda entre 1965 e 1972, e não possui muita semelhança com os faroestes americanos.

Trata-se de um género próprio nascido em Itália, tendo como temática a vingança sanguínea e heróis bronzeados e belos com a barba por fazer. Dois outros filmes em destaque na época são “O Bastardo” (1968) de Duccio Tessari e “O Grande Silêncio” (1968), de Sergio Corbucci. O sucesso dos faroestes italianos estava garantido se tivesse no elenco o nome de Kinski.

“Il grande silenzio” (1968)

Entretanto, as suas principais encenações como ator devem-se aos filmes de Werner Herzog. “Aguirre, a Cólera dos Deuses”, filmado em 1972 sob circunstâncias catastróficas na selva amazónica, calor e chuvas ininterruptas, conta a história de um conquistador alucinado, perdido no meio da selva, que leva toda a tripulação do seu navio à morte. Aguirre foi um sucesso imediato em França quando lançado em 1975.

O filme fascina de uma forma estranha, parco em diálogos, o desenvolvimento das cenas é vagaroso e as cenas monótonas. A atmosfera densa e húmida da selva é completamente captada pela câmara e domina todo o filme. A selva amazónica torna-se um símbolo de cárcere. O próprio ator, mesmo fora das filmagens, sentiu-se prisioneiro da magnitude desta natureza.

Vale a pena mencionar também os filmes “Fitzcarraldo” (1982) e “Woyzeck – O Soldado Atraiçoado” (1979). “Fitzcarraldo”, filmado no Peru e no Brasil, no meio de picadas de mosquitos, mostra a obsessão de um realizador de ópera em construir um teatro no meio da selva. Na Alemanha, o filme “Woyzeck – O Soldado Atraiçoado”, baseado na dramaturgia do escritor alemão Georg Büchner, recebeu grandes elogios por parte da crítica.

Trata-se da história de um soldado comum, uma pessoa extremamente submissa, que é humilhado por tudo e por todos e até serve como cobaia para experiências de medicina. Vive apenas para a mulher e para o filho; quando esta o trai com um oficial do exército, ele mata-a. Depois comete suicídio, afogando-se.

Neste filme, Herzog também dispensa qualquer efeito especial, ao que chamam de filme “primitivo”, como também foi “Aguirre, a Cólera dos Deuses”. “Woyzeck – O Soldado Atraiçoado” contém o sofrimento, a humilhação, a loucura e a miséria de uma vida humana incorporada por Kinski da forma mais perfeita. No seu apartamento na Califórnia, deitado na cama, Klaus Kinski morre no dia 23 de Novembro de 1991, nu e só.

Nos bastidores de “Fitzcarraldo”
Brian Sweeney Fitzgerald – ‘Fitzcarraldo’

Miguel Mendes

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